“Eu vou te dizer duas coisas: uma é sobre a verdade…”

Evelyn de Almeida Orlando

“Vou te dizer duas coisas, Ova.

A primeira é sobre a verdade.

Sabe os pássaros de que seu pai corre atrás? Eles não estão voando para o Céu. Eles vêm no verão e partem no inverno.

A segunda, é sobre seu pai, Ova.

Não importa o que digam, não importa qual seja a ordem, não importa qual seja a punição,

Seu pai é um homem bom”.

Escrevo esse texto enquanto elaboro a frase dita pela avó de Ova ao educar sua neta sobre fragilidade das verdades. Embora ela coloque como duas coisas, ambas têm relação direta e falam da representação da verdade. Ao falar do pai, a avó ensina sua neta a desconfiar das verdades, desconfiar de quem produz as verdades, ensina a buscar outras representações de algo que lhe é apresentado como verdade.

Ova é uma menina de seis anos, cujo pai é um pastor de ovelhas com problemas mentais e recebe uma condenação à morte por assassinar uma menina da idade de sua filha. Ova, órfã de mãe, mora com sua avó e seu pai em uma aldeia no mar Egeu, até o dia em que ele lhe é tirado de sua vida, por um julgamento pautado pelo uso arbitrário do poder. Essa é a trama do filme turco que chegou este ano no Brasil, sob o título Milagre na cela 7. O filme, por sua vez, é uma releitura do filme sul-coreano  Miracle in Cell No. 7. Apesar de algumas mudanças no roteiro, a ideia central é a mesma. Assisti a versão turca e me pus a pensar a partir dela, reiterando a minha crença na força pedagógica do cinema que nos põe diante de novas e velhas questões a todo tempo, por diferentes perspectivas.

A definição da verdade geralmente vem acompanhada de um julgamento na sequência. Somos acostumados a essa prática desde pequenos. Somos ensinados a amar a verdade, a brigar por ela, a fazer justiça por ela, a sofrer por ela. Ensinam-nos que a verdade é algo que deve estar acima de todas as coisas. Não somos ensinados, no entanto, que a verdade nessa perspectiva singular é uma invenção. Que a verdade é sempre uma produção, fruto de uma narrativa, controlada por quem tem poder para fazê-lo. Não nos ensinam que a verdade comporta em si uma disputa de perspectivas com muitas sombras que tornam muitas de suas partes invisíveis. Não nos ensinam que a verdade não corresponde aos fatos tais como aconteceram, ipsis litteris, porque ela jamais dá conta da totalidade. Não somos ensinados a desconfiar das verdades, a confrontá-las, a desmontá-las. Por quê?

Sem a baliza da verdade, os julgamentos morais ficariam enfraquecidos. Politicamente, isso prejudicaria a ordem. Mas que ordem? Quem institui a ordem? Quantas vezes reproduzimos julgamentos condizentes com determinada ordem sem sequer nos perguntarmos se acreditamos mesmo nisso? Fazemos pela força da cultura, pela força que a verdade carrega em si. E nos tornamos juízes, imbuídos da verdade, fazemos justiça. No filme, os colegas de cela do Memo acreditaram na verdade que lhe contaram. Não desconfiaram. Não questionaram. Não quiseram ao menos ouvir outra versão da história. Foram implacáveis em seu julgamento em nome da justiça.

A convivência com um homem cuja mentalidade era de uma criança de seis anos, o confronto cotidiano com sua inocência, foi o que os fez perceber a atrocidade da verdade produzida. Neste caso, a produção ficou escancarada. Então, tentaram descobrir a verdade, mas muitas vezes quem controla a narrativa não está interessado na verdade, mas na representação de verdade que se pretende instaurar. Novamente, no filme, a manipulação da verdade se apresenta nitidamente. É possível enxergar, mas eles não veem, o abuso do poder sequer vêm à tona. Será por que estão interessados em resolver o problema de Memo, ou porque confrontar a verdade, especialmente quando ela vem com o selo do Estado, não é uma prática comum?

Discordo de alguns colegas que afirmam que a História não tem uma função pragmática para nossos futuros professores em seu processo de formação, assim como nenhuma das disciplinas das Ciências Humanas. Os apaixonados por uma formação mais técnica dizem que são disciplinas que não instrumentalizam nossos professores, não os prepararam para a sala de aula, não fornecem respostas prontas para serem aplicadas. De fato, essas disciplinas evitam estabelecer verdades e ensinam a desconfiar das verdades estabelecidas.

Mas elas têm uma serventia. Elas provocam a pensar, desconstruir, a desconfiar das narrativas ordenadas e a procurar outros sujeitos, outras histórias, outras verdades. Elas instigam o olhar para a desnaturalização das coisas, das palavras, da vida. Elas inquietam. Por meio delas se entende que os modos de viver são produtos da cultura, dos grupos sociais e de suas épocas. Foram construídos e podem, portanto, ser desconstruídos e reconstruídos em busca de novos modos de viver. A História e as Ciências Humanas, de modo geral, confrontam as verdades e, ao fazê-lo, ameaçam a ordem estabelecida. Por essa razão, são territórios em disputa. Longe de não terem nenhuma serventia, esse campos de conhecimento podem ameaçar a ordem ou conformá-la. Isso depende de quem controla a narrativa.

Professores formados com bom embasamento em Humanidades não são bons professores porque imprimem suas narrativas ou porque estabelecem suas verdades, estas também outras, mas porque ensinam uma postura permanente de desconfiança da verdade, porque sensibilizam, abrem horizontes para novas reelaborações da vida, desacomodam e instigam uma prática que vai além do exercício disciplinado do pensar e promovem em suas aulas o exercício libertário do pensar. O contrário disso é a produção de uma massa de mentes cativas às verdades estabelecidas que reproduz, sem pensar, a violência da aniquilação de outras narrativas e de seus sujeitos.

Ensinar a pensar, ensinar a ler o mundo e suas verdades como fez a avó de Ova com sua neta, com inspiradora simplicidade, pode ser considerado libertador e ameaçador ao mesmo tempo. Eis a grandeza e a miséria das Ciências Humanas para uns e outros.


Imagem de destaque: Reprodução

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *