Estratégias marinadas em crueldade

– condimentos de uma era comandada pelo capital –

“Isso é vida real?
Isso é só fantasia?
Preso em um desmoronamento
Sem escapatória da realidade
Abra seus olhos/Olhe para os céus e veja […]”
(Freddie Mercury)

Ivane Perotti

Assustada pela sordidez não improvisada da rapsódia, a salsa encontrava-se no canto do prato. Valsavam oréganos, nozes-moscadas, manjericões, alecrins, todos desapercebidos de sua natureza culinária.

A pimenta-do-reino, reservada em cadinho escuro, amargava aparente exclusão.

O rapsodo, crendo-se ímpar recitador, cobria-se de ignomínia. De sua fronte avara emergiam notas de descalabro. Fez tropeçar o alho recém-recrutado. Cuspiu ao lado do prato a saliva fétida. Não gozava, o folclórico adestrador, do menor conhecimento para comandar as especiarias. As descomposturas coroavam-lhe.  A tez altiva, escondia um bárbaro.

— Dancem as canelas em pó! O pau, para a bandeira deste banquete.

— Prendam a páprica! A cor me dá gases… subversiva! Socialista, essa daí!

As folhas-de-louro, ao perceberem o tom das missivas babadas sobre a toalha amarela, tentaram evadir-se do local. Contudo, a mesa estava posta; nem de longe via-se o feijão, o arroz ou qualquer outro grão que lhe garantisse imunidade. Cadê a comida?

— Peguem essas verdinhas dissidentes! Louros para mim, o gado não pasta!

No prato, o que poderia ser um mapa dos tesouros nacionais, transformava-se em cadafalso maldito.

— Bendito é o que em mim crê! Eu tenho a verdade! Dancem! Dancem! Dancem!

O rapsodo também sofria de transtornos de imagem. A barriga sobrava-lhe sobre as calças, o paletó não lhe caía bem. Acreditava-se atlético. As palavras raiavam a vergonha alheia. Entendia-se “entendedor” de todas as coisas no mundo, visto e não visto. Seus impropérios maquiavam-se de sandices, mas tudo não passava de um blefe. Os olhos esbugalhados miravam no próprio umbigo com força letal. Velho recitador de conflitos, cuspia maldades articuladas em copa maior. Não era poético! Patético!

— Retirem da cozinha os que se escondem. Quero todos aqui. Sigam-me.

Os primeiros temperos jogados no prato suavam suas propriedades. Aproximavam-se do esgotamento. A salsa chorava. Não queria morrer ali, sem despedir-se de sua família botânica. Apiaceae era uma família de ardentes defensores da cultivação.  Não merecia tal destino.

— Saiam! Saiam! Saiam todos…

Outros temperos, pelo desconhecimento da realidade, ou doutrinados para não entenderem a natureza estratégica da manipulação, apresentavam-se voluntariamente para a mistura. O cardamomo, comedido em sua origem indiana, inflou-se de motivos e aderiu ao chamado. Foi rechaçado, como era de se esperar, pois o rapsodo, longe de conhecer os livros de Homero e sem nunca ter lido Macunaíma, de Mário de Andrade, apresentava outras patologias: desconhecia a semiótica, negava a história, desconsiderava as bases da lateralidades e, ainda, insistia em marginalizar o ponto final dos antigos telegramas. Possivelmente, o seu olho adunco, não alimentava as relações lógicas de recursividade linguística. Ou, talvez, se devesse pensar o contrário. Porém, o mal alastrava-se sobre a grande mesa sem que responsabilidades fossem cobradas. A copa trabalhava, na surdida, urdindo estratégias.

No prato sobre a mesa, os condimentos já não valsavam. E na cantoria do recitador, os versos destilavam ódios recortados em fragmentos e falsificações. Tristemente, o pior estava à frente. A pimenta-do-reino, que até então parecera preterida, foi especialmente potencializada com urucum, curry e lemon pepper. Qualquer chef compreende as alegorias por detrás da escolha: o indicativo da cor e o problema de lateralidade – esquerda/direita, a simbologia da origem e, para terminar, o foco no modus operandi do mestre colossal. É! Nem tão colossal assim, mas para o rapsodo, mirar na cruz… a tábua de picar mantinha-se na terra do pato rico.

Clamados a seguir o recitador, reuniram-se outros elementos culinários, cada qual profetizando as próprias ignorâncias. Munidos da porção que lhes cabia, foram instruídos a aspergir a mistura com grande fôlego.

— Mirem nos olhos e assoprem. Assoprem!

— Não tem macho aí para assoprar com mais força?

— Não fraquejem! Assoprem! Se alguém espirrar, ganha um passe

PS: peço desculpas aos rapsodos da história pelo demérito que a representação infere.


MERCURY, Freddie. Excerto da letra de Bohemian Rhapsody, música do Grupo Britânico Queem, no Álbum A Night at the Opera ,1975.

Imagem de destaque: Priscila Paula

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