Entre Pedros o Brasil que virou ‘Pedreira’

Daniel Machado da Conceição

Durante minha infância e adolescência, o programa Escolinha do Professor Raimundo alegrou tardes e noites no país que tinha na televisão sua principal fonte de entretenimento. Chico Anísio sempre com humor satírico, hilário e, muitas vezes, crítico, liderou uma turma com personagens que, se supunha, representavam a diversidade brasileira e expressavam traços de supostas identidades culturais presentes no povo. A Escolinha exaltou a caricatura de alunos, em muitos momentos, desinteressados, individualistas, irresponsáveis e sem compromisso de aprender. O “jeitinho” ou a malandragem também nortearam o reconhecimento de alguns personagens que eternizaram chavões, por vezes, depreciativos da condição humana.

Entre todas as personagens, Pedro Pedreira sempre pareceu ser questionador dos fatos, aquele que suscitava a controvérsia pela negação pura ou estimulava certo ceticismo, então saudável e pertinente, pois questionava a narrativa histórica hegemônica. Exemplo de sandices foi, certa vez, sua reação ao questionamento do professor Raimundo sobre a Guerra do Paraguai. A argumentação do professor indicava a formação de uma Tríplice Aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai, que juntos atacaram o Paraguai enquanto este se destacava na América Latina com elevados índices de desenvolvimento. Pedro Pedreira contesta tal afirmação solicitando documentos e assinaturas do período, como o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), criado em 1944, que apresentasse o alto desenvolvimento do país vizinho por volta de 1860, ou ainda o fac-símile do contrato da Operação Paraguai. Por fim, encerra dizendo que o principal herói brasileiro na Guerra do Paraguai foi Edson Arantes do Nascimento (Pelé), autor do gol que classificou a Seleção brasileira de futebol para disputa da Copa do Mundo de 1970, em partida contra o selecionado do país vizinho. Ao mesmo tempo, desvalorizando a figura do Duque de Caxias como herói, Pedro Pedreira se aproxima de uma crítica realizada por Walter Benjamin em suas teses de “Sobre o conceito de história”, ao destacar que próceres e monumentos contam apenas a versão da história dos vencedores.

Pessoalmente, enquanto assistia os episódios, pensava: como pode negar fatos históricos? Sua performance artística expressava grande confiança ao apresentar propostas absurdas e esdrúxulas de (contra)provas para que se pudesse então aceitar algo como verdade. “Não me venha com chorumelas!”, era o bordão do personagem Pedro Pedreira. No passado era cômica sua descarada audácia, intransigência e ignorância cega, produzindo boas risadas, pois a piada estava no centro da encenação.

Hoje, triste, percebo que o Pedro Pedreira deixou de ser um traço da representação histriônica do brasileiro e passou a modelo aceito na regência das relações políticas, econômicas, sociais e culturais. O cômico da ficção virou tragédia na realidade de um país que transformou a sátira caricatural e festiva em exaltação da barbárie física e intelectual. Na verdade, o que era tragédia, ou melhor, comédia, virou farsa.

Em um outro extremo, temos a canção de Chico Buarque que descreve o “Pedro pedreiro”, personagem supostamente sem muita instrução que realiza suas atividades rotineiras. Já sem reação frente à vida, se mostra conformado vivendo à espera(nça). “Pedro pedreiro fica assim pensando / Assim pensando o tempo passa / E a gente vai ficando pra trás”. Pedro pedreiro é o oposto do Pedro Pedreira, porém ambos contaminam o jogo democrático que roga por participação e mediação. São figuras de um Brasil que preferiu apostar na contradição irresponsável e irreparável. Um quer impor ideias e o outro não se arrisca a pensar. Se há alguma possibilidade de mudança é apenas repetindo o refrão da música “Para Pedro” do artista gaúcho José Mendes que diz: “Para Pedro, Pedro para / Para Pedro, Pedro Para / Pedro Para, Para Pedro / Para Pedro, Pedro Para”.

“Não me venha com chorumelas” é o retrato do Brasil contemporâneo, com muitos Pedros Pedreiras e Pedros pedreiros de todas as profissões, que estão sem disposição ao aprendizado e ao debate coletivo. Ao dar destaque ao primeiro, posso dizer que opulenta certa altivez que se reduz a gritos e ao dedo em riste, expressões do impulso de sempre dar um ponto final às discussões. Apesar de seu ponto de vista, por mais cômica ou hilariante que possa ser, trata-se de uma visão carregada de argumentos que revelam ignorância e maldade em uma sociedade com informações disponíveis de maneira muito facilitada. Projeções em telas diminutas ou até gigantescas permitem que as informações estejam a um clique, dependendo apenas de Pedro deixar de ser passivo ou ideologizado para buscar os reais fatos. As reflexões diversas são sadias, o desafio do Pedro é sair da bolha criada por grupos nas redes sociais.

As fakes news afetam Pedros pedreiros que se deixam levar pela desinformação e mobilizam Pedros Pedreiras com argumentos, mesmo que falsos, que elevam o tom da contradição.

Os Pedros pedreiros se esquivam da responsabilidade, permanecem à espera da grande realização. Esperando estavam, esperando permanecem agora ainda mais atônitos e atordoados, sem desejo de sonhar, pois “se dá o desespero de esperar demais”. A espera pode significar omissão que se torna prejudicial ao jogo democrático que prima pela participação ativa.

Os Pedros Pedreiras, por outro lado, vendam os olhos e tapam os ouvidos para o evidente, destilando os seus sensos críticos de forma difusa e deslocada da realidade que os permeia. Essa é a realidade fatídica de um Brasil Pedro Pedreira que aguarda sempre um não me venha com chorumelas, uma expressão que foi atualizada como “é tudo Mi Mi Mi” e “choro é livre”.

O Brasil, outrora dos Pedros na Colônia (Pedro I), e no Império (Pedro II), parece que no auge de seu movimento democrático, em pleno século XXI, optou compartilhar comportamentos e sentimentos expressos por outro Pedro, até então caricatural, mas que se tornou uma realidade cruel. Por infelicidade, nesse processo deixamos de valorizar a coragem, a inocência, a invenção e o desejo de aventura de uma criança como Pedrinho, personagem criado por Monteiro Lobato em 1920. A curiosidade de uma criança, sua vivacidade, deu lugar ao rancor e à rabugice que, decrépita, é incapaz de apreciar um mundo sem fronteiras.

O Brasil Pedro Pedreira é rancoroso, arrogante, sisudo e agressivo. Uma nova imagem de um Brasil que aceitou a piada como realidade e a “verdade” como piada. A omissão do Pedro pedreiro fez surgir em nosso país uma nova representação, Pedro Pedreira ganhou o protagonismo assumindo uma marca cada vez mais indelével. A única maneira para suportar esse momento, é parafraseando o próprio personagem, “só enfrenta quem aguenta!


Esse texto possui seu primeiro esboço ou fragmento com o título “Brasil Pedro Pedreira” no blog Escrita.

 

Imagem de destaque: Reprodução / TV_Globo

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