Ensino híbrido ou ensino franqueado?

Katya Braghini

A educação pensada como uma utopia é uma associação entre a sociedade existente e aquela que está sendo criada de forma imaginária, na tentativa de discernir sobre, criticar ou até mesmo condenar a realidade vivida. Essa capacidade estruturadora de mundos futuros que é a utopia alimenta a Pedagogia, e a consolida como ciência que anuncia um tempo novo. Na história, a Pedagogia passou a proprietária desse poder de anunciação que encaixa os procedimentos educacionais no eixo do tempo.

Como estratégia discursiva, pensar a fundação de um novo paradigma educacional, desqualificando passado, com a finalidade de convencer pessoas, é tão velho como a própria educação dita “tradicional”, condenada a reboque. Não é de hoje que se cria um passado tenebroso para a escola, para que, no presente, seja fundada a mais nova “educação de qualidade” mediante a inclusão de inovações tecnológicas tidas imediatamente como o sinônimo de progresso. As inovações educacionais, raciocinadas como ideologias ou apresentadas na forma material são apresentadas como um descolamento do passado. É sempre interessante criticar esses discursos, que tornam a modificação contínua de práticas escolares em inevitabilidade histórica.

O “ensino híbrido” tem sido apresentado pelas mídias como o mais novo paradigma educacional. Busca-se educar a nova geração por meio de ferramentas digitais de forma mais “emocional”, “sensível”, “apegada à experiência direta dos alunos”.  A formação acontece com atividades que mesclam – daí o termo em inglês blended – a ação protagonizada pelo aluno e o compartilhamento desses estudos com outros grupos em estudos on-line/ off-line. Os recursos digitais, dispositivos móveis, tablets, celulares, são ferramentas que podem ser usadas em vários locais e, por isso, o grupo não fica circunscrito à sala de aula. Dentre as vantagens divulgadas pela prática destaca-se a flexibilidade e rotatividade. 

É flexível, porque os professores não são controladores da ação, mas as tutelam, e necessitam de um conhecimento instrumental para tanto.  O saber sobre a máquina, não necessariamente é transmissível, mas serve para que o professor não fique em desvantagem diante do conhecimento dos jovens. Desprivilegia-se a ideia de ensino simultâneo em benefício de atividades assíncronas, feitas em pequenos grupos. A ideia é a de que a plataforma virtual congregue as atividades e centralize os diversos temas de um curso, de preferência organizado na forma de projeto. Estimula-se um determinado tipo de disciplina, pensada como autogerenciamento das práticas pelos alunos, a partir do estímulo de sua metacognição: “Pensar sobre o que se está pensando”, “Aprender a aprender”. 

Na história da educação é comum que objetos diversos sejam transformados em materiais didáticos. E não é a primeira vez que eles viram conteúdo de ensino, para além de recurso didático.  Isso acontecia com os objetos usados nas “lições de coisas”. E não se trata aqui de condenar completamente o uso de aparatos digitais em sala de aula, pois não há como negar a modificação de sensibilidades e comportamentos diante da massiva presença de tais tecnologias. Mas, há a necessidade de discutirmos o processo de capitalização embutido na operacionalização dos discursos em torno desse tipo de ensino, que nem chega a ser um currículo invisível. 

A anunciada perfeição inovadora do ensino híbrido tem em si, como procedimento intrínseco, a ação de truste que passa a qualificar o que é boa e má educação. Apresenta-se e é acionado na forma de pacote de compartilhamento de conhecimentos mediante ao funcionamento integrado de aparatos digitais. Esse  pacote de produtos é visivelmente um cartel. Empresas, coligadas ou não, se unem para oferecer os produtos essenciais ao funcionamento da educação híbrida. Junto a esse primeiro movimento, que é a organização do mercado, são criadas outras necessidades pedagógicas: ferramentas de aprendizagem, tutoriais, aulas pré-moldadas, aplicativos de smartphones, audiovisualização do conhecimento etc. A compatibilidade entre produtos se torna uma necessidade pedagógica e pode ser vista em vários exemplos atuais que se amparam nos discursos dessa educação nova, seja ela apresentada na forma escolarizada ou não. 

O movimento denominado UnCollege, fundado por Dale Jasper Stephens, estimula jovens a abandonar as suas faculdades para hackear a educação. A ideia é desconsiderar o ensino superior como caminho para a profissionalização. O UnCollege funciona pela autogestão de pequenos grupos instalados em repúblicas no Vale do Silício e buscam inspiração em sujeitos como Steve Jobs (Apple), Bill Gates (Microsoft), Mark Zuckerberg (Facebook). Os alunos estudam com plataformas de ensino livre na internet. Peter Thiel fundador do sistema automático de pagamento PayPal chegou a oferecer U$100 mil para os alunos que abandonassem as suas universidades e se unissem ao movimento. Ele abriu um novo tipo de filantropia: aquela que financia talentos empreendedores formados por bases informatizadas. Criam talentos individualizados que não se descolam das bases informatizadas. 

O Massive Open Online Courses (MOOCs) é um exemplo de plataforma de livre acesso ao conhecimento e investe na distribuição em massa de conteúdos por meio de processos de informatização institucionalizados. Ele permite o acesso ilimitado, gratuíto, ao conteúdo produzido por diversas universidades. Grupos como o UnCollege e outros, se alimentam dessas ferramentas. Essas plataformas virtuais usam vídeos curtos, bate papos, infográficos dinâmicos, para quem acessá-los. A ideia inicial, desenvolvida pela professora Daphne Koller (Universidade de Stanford), era ceder conteúdo, sem certificação, sem taxas, sem matrícula, a todos. A Udacity (2011) e a Cousera (2012) foram empresas fundadas na esteira desse projeto. O estado da Califórnia contratou a Udacity para o “resgate” de alunos atrasados no ensino superior, tendo por base a amenização dos custos com estudantes retardatários. 

No mesmo caminho surgiu a EdX, plano da Massachusetts Institute of Technology (MIT) com a Universidade de Harvard. Esta é uma plataforma que distribui conhecimentos por meio de cursos pré-moldados. Dela destaca-se o conceito de “sala de aula invertida”, isto é, o conteúdo principal está depositado na plataforma on line/off line e o professor-tutor administra a aula na especificidade híbrida.

O sistema Uno Internacional é um exemplo brasileiro que está sustentado por esses dois conceitos: ensino híbrido e invertido. O material didático impresso é produzido pela Editora Moderna, ligada ao Grupo Santilliana, que por sua vez, é subsidiária do Grupo de imprensa e entretenimento Prisa (Espanha). Para o braço educacional da holding a qualidade de ensino depende do vínculo entre as novas tecnologias e os produtos editoriais que respondam às “novas necessidades dos usuários” na forma customizada. As empresas parceiras do sistema de ensino e apresentadas como plano fechado de compatibilidade técnica são a Apple, Avalia, Lexium, Epson. Todas elas orientadas pelo Modelo de Aprendizagem por Competências (MAPCO) e com avaliações de desempenho produzidas pela mesma métrica do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e Prova Brasil. Discursos de pedagogos, psicólogos da comunicação, futurólogos, entre outros, sustentam a importância do material completo no mundo atual apontando para o caráter educativo exemplar de tais produtos. 

Nos Estados Unidos a compatibilização de empresas que vem colado a esses discursos, transformando o sucesso financeiro em objetivo educacional já é duramente criticada. Aponta-se que a impressão de desprestígio das universidades como base formadora dada por esses discursos, mascara um movimento perverso que é o surgimento de um novo tipo de segregação: de um lado, alunos que buscam o ensino on line em massa como base de sua formação; do outro, privilegiados, estão aqueles que permanecem com os professores presenciais em aulas em que a retórica e o debate ainda são as principais práticas de ensino. Um docente recebendo seus estudantes presencialmente se tornou prática distintiva. Critica-se a ideia de empreendedorismo apontando-o como a abdicação do Estado e dos adultos na educação dos jovens. Existe o lado do desamparo do empreendedor. Critica-se a prática de autoconhecimento dos alunos. Ele parece bom nos discurso pedagógico, mas não supõe que o resultado possa torná-los sujeitos egocêntricos e centralizadores; alunos que podem tomar o seu privilégio pedagógico uma  prática social e política.  

Diante da circulação de representações hegemônicas, percebe-se o jogo de interesses de grupos empresariais transnacionais, agora ditos educacionais, que disputam mercados de produtos e serviços em primeira mão e que perceberam na escola um caminho seguro para o estabelecimento de suas marcas e patentes. Isso não é segredo. Não chega a ser um currículo oculto. Fomentam que as sensações geradas por esse aparato são um caminho garantido de educação. Indicam que a tela, como objeto de transferência, determina o ritmo social, transformando o audiovisual informatizado na principal configuração produtora das percepções. Há quem postule o fim das bibliotecas escolares julgando que o conhecimento vinculado aos IPads são de maior interesse do aluno. 

Portanto, abre-se mão de tradicionais manejos intelectuais, sensoriais, vivenciais em nome de um currículo prescrito na forma de tutoriais. Por esses discursos, o interesse, categoria analítica que foi historicamente vinculada à existência do aluno, parece uma ditadura, que se alimenta dessa imposição representada por novos aparatos. Tem-se a impressão de que as empresas abrem franquias para as escolas e não ao contrário. Tem-se a impressão de que é prestigioso estar cercado por todas essas marcas e modelos que, para além da esfera educacional, separam pessoas e posições sociais. 

No tom do “aprender a aprender” ficam outras questões: quem disse que todas as pessoas podem ter acesso a tudo isso? Na agenda pública quanto se paga por esse currículo cartelizado que transformou sistemas informatizados, com marcas e modelos, em imperativos educacionais? Alguém pensou que sistemas operacionais de informáticas nem sempre funcionam em sua plenitude e que os problemas técnicos podem ser maiores que os objetivos pedagógicos? Quem não alcançar esse forma escolar será desqualificado? O entretenimento escolarizado, vinculado ao interesse e a atenção dos alunos, só tem por intenção tornar a escola menos chata? Formadores e educadores estão realmente certos disso?

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