Engenharia reversa

– a in/contida selvageria de um projeto lesa-pátria

Ivane Perotti

“Preciso do mundo como o

 mundo precisa de mim”. (Paulo Freire)

Um grupo apostava na cavalgadura. Outro grupo incitava o cavalgador. A cena, híbrida de sinais e simbologias, reservava-se macabra aos olhos de qualquer observador consciente. Mas, consciência era produto escasso no mercado dos projetos nefastos. O conjunto de valores humanos que tecem a consciência extinguia-se. E na raridade da aparição, categorizavam-se substâncias da emoção, como se tal fosse vestígio de infame des/inteligência. Daí que, cavalo e cavaleiro não emparelhavam cabeças.

_ Ti… ti…pruque qui eli tá andano ansim?

_ Eli num tá “andano”, fio.

_ Craru qui tá.

_ Não. Arrepári…eli tá sendu “andadu”. Tendeu?

O abismo entre os aspectos do verbo e as travas do discurso abafaram as dúvidas do menino. Ele queria perguntar outra coisa, coisa de menino sendo arrastado por umas gentes desconhecidas. Mas a sua Tia Jó andava como havia sido dito.

_ Vamu! Num si arredi!

O aspirante a pré-adolescente correu os passos da tia sentindo o gosto do ininteligível sob os pés quase descalços. Era domingo. E fora levado a pedido da mãe que receberia uma parte do dinheiro a ser faturado na movimentação. Preferira ficar em casa procurando ossos por debaixo de árvores em qualquer terreno baldio. Não fora possível. Faltava comida e faltava com força, há dias. Nem farinha, nem leite, não havia o que jogar nas panelas. Então, o peso de uma culpa ainda não apresentada bateu continência. Escolha? A escolha era uma praga. Uma praga que o obrigava a estar ali, olhando de baixo para cima, enroscado entre aquelas pernas nervosas, aquelas mãos fechadas, aqueles gritos  que lhe chegavam para sombrear as ideias.

_ Ti…tô cum medu!

_ Qui isso, minino! Vamu!

Ouviu o comando de alguém:

_ Chama essa gentalha mais prá diante. Vamos!

Em resposta foram empurrados para a frente do comboio. Homens, mulheres e crianças dilacerados pelas fomes, muitas fomes, de muitos rostos e cheiros nauseabundos. Sentiu que se fazia um nó abaixo do queixo. Outro nó amarrava o peito com tiras de arame. A Tia Jó apertava o passo. Um bebê de colo assustara-se e chorava como ele próprio gostaria de chorar. Não entendia o que se passava, mas o que se passava assustava-o, provocava-lhe um sentimento de tristeza maior do que a tristeza que sentira quando o pai fora embora sem avisar. Com a mão na mão da tia, perdia-se como se perde um homem nas sombras da percepção. O que via, não entendia. O que não entendia parecia não ter fim. Viu os olhos de outras crianças: olhos de fome, olhos de compaixão. Talvez já conhecessem o evento, talvez já tivessem atravessado aquele cadafalso de cimento cru. As lágrimas subiram sem aviso e roubaram-lhe a vergonha. Para onde iam? Por que a Tia Jó insistira em ganhar uns trocados naquele lugar?

_ Ti…vambora?

_ Di nenhum jeito, fio. A genti percisa arrecebê. Intendeu?

_ Eu…tô.. num sei quem são essas… essas  genti, Ti!

_ Ara!  Nóis tudu semu u povu! U povu! Intendi?

Não entendeu. As imagens à frente de seus olhos destroçavam as tentativas de colocar-se bem. Não compreendia as vozes altas, os gritos e a constrangedora diferença entre os que caminhavam enrolados em bandeiras e… eles. Eles caminhavam como se os farrapos sujos sobre o corpo fossem troféus. Troféus de tristezas e necessidades. Troféus de miséria, não misericórdia. Troféus de abandono, não construção. Troféus de separatismo, não inclusão. Troféus de morte matada, não salvação.

Emparelhado à lateral da missiva cavalar, o menino tomou coragem e arrastou a Tia Jó para fora do zênite sombrio.

_ Ti! Chega! Num queru mais ficá aqui…

_ Tá varianu, mininu?

Ele não estava, mas ainda não sabia disso. Contudo, a consciência também se finca quando as sombras das árvores abraçam o coração de um sobrevivente. “Mudar é difícil mas é possível.” (FREIRE,2015) – “sem vírgula para não emperrar o texto.” (idem).

Referência

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira.11ª edição. Notas e Revisão de A. Maria FREIRE. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2015.


Imagem de destaque: Priscila Paula

 

 

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