Educação na cidade, contra o esquecimento – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

Uma cidade, qualquer que seja, oferece em suas ruas uma história que pode ser multiplamente narrada. Não é diferente com Berlim, onde muito da história contemporânea está fartamente documentado em cada esquina. Revoltas e insurreições, mudanças na direção política, grandes utopias da ciência, socialismo e capitalismo, movimentos de trabalhadores e avanços do capital, ondas migratórias, Guerra Fria, fascismo, antissemitismo, orientalismo, contracultura etc., tudo parece estar materializado nas ruas da capital da Alemanha, nem sempre na forma de monumento.

Uma cidade pode ser educadora, nos termos do conhecimento que ela sintetiza da história e do contemporâneo, nas particularidades que dialogam com o movimento universal. Mas, para isso, é preciso que seja viável caminhar por ela, que esteja sempre pronto o convite para o deslocamento preferencialmente pedestre e por transporte público, tranquilo e funcional, desinteressado. É necessário que os riscos de uma cidade sejam principalmente os do prazer e do desconcerto, não os de tropeçar e cair, ser atropelado, assaltado ou de sofrer outras formas de agressão. A cidade não deve ser hostil a moradores e visitantes, nem escamotear seu passado, em insípida limpeza que frequentemente destrói não para conservar ou construir, mas para fazer esquecer.

Quem anda pelas largas calçadas de Berlim encontra pequenos blocos metálicos, em coloração bronze. De aspecto discreto, que um desavisado transeunte poderá confundir com um ducto das companhias de águas ou de eletricidade, os blocos ficam no nível da calçada e não atrapalham a caminhada. Seu efeito passa a ser outro, desde que em algum momento a pessoa se detenha por alguns instantes a observar o que neles está gravado. No pequeno quadrado lê-se um nome, data e o local de nascimento, quando e para onde uma pessoa foi deportada e, se foi possível saber, em que momento morreu nos campos de concentração e extermínio durante a vigência do Nacional-socialismo na Alemanha e nos países por ela ocupados. As peças metálicas ficam em frente ao endereço em que judeus e outros perseguidos moravam ou trabalhavam ao serem sequestrados pelo Estado que legalizou o terrorismo e o

racismo. (Há algo semelhante em Buenos Aires, onde pequenas placas nas veredas demarcam lugares e datas em que pessoas foram mortas e sequestradas durante a mais recente ditadura que tiranizou a Argentina).

Entre as consequências do Nacional-socialismo está o genocídio, assassinato e tortura de judeus, romas e sintis, negros, eslavos, além de outros grupos “indesejáveis” e “degenerados”, como deficientes, homossexuais, comunistas, testemunhas de Jeová ou simplesmente democratas. Ao Shoa – o holocausto judeu – foi erigido, há alguns anos e depois de amplo debate, um memorial próximo ao Portão de Brandemburgo, na área central da cidade. Na forma de uma praça com blocos de concreto retangulares que lembram um infinito e indeterminado cemitério, formando labirintos que confundem e embaralham a vista, o monumento é perturbador, o que não impede que seja um local de encontro de jovens e de jogo para crianças. Em seu subsolo há uma exposição de imagens e textos que mostram o paulatino percurso do genocídio, bem como instalações que fazem o visitante mergulhar no horror sem que ele seja pronunciado, em movimento cuja extensão só a arte pode alcançar.

O próximo dia 12, terça-feira, marca dos oitenta anos do Campo de Concentração de Sachsenhausen, localizado no pequeno município de Oranienburg, ao norte de Berlim e ainda em sua zona urbana. O campo, além de suas funções “tradicionais” de prisão, tortura, extermínio e morte, teve caráter experimental, tanto porque serviu para muitas pesquisas com humanos – da incubação de bacilos a investigações sobre nutrição e fadiga – quanto porque ajudou a criar e a desenvolver uma estrutura administrativa eficaz para o morticínio organizado.

A visita a Sachsenhausen, a poucas quadras do centro de Oranienburg, impressiona. O campo, que depois se tornou prisão administrada pela ocupação soviética, é pouco espetacular, não há pirotecnia em suas instalações e o farto material documental ajuda a entender, em detalhes, a organização geográfica e funcional das edificações que um dia abrigaram o terror. As descrições e imagens, bem como os espaços que foram preservados, prescindem de adjetivos, deixando que o que é substantivo ganhe espaço e, com ele, toda força do acontecido, como gritos que ecoam em silêncio.

Estar atento à composição da cidade, aos sinais mais discretos e aos monumentos, sempre que se possa andar por ela, deve evitar dois movimentos. O primeiro é a monumentalização, como se aquele espaço ou objeto, construído ou eleito para eternizar, fosse suficiente para exorcizar o passado, retê-lo de forma asséptica em suas amarras, como que nos desincumbindo dele. O segundo é supor que a cada passo o passado nos vigia e aprisiona. Sem cinismo e sem paranoia, portanto.

Entre as pequenas placas de metal que povoam as calçadas de Berlim há pelo menos uma que anuncia que um perseguido, cuja moradia era no prédio em frente, conseguiu exilar-se na Inglaterra. Um pouco de esperança, talvez. Há outras, no entanto, que estão danificadas. Ação do tempo? Falta de cuidados? Ou algo pior? É a história que nos rodeia, da qual fazemos parte. É bom pensar e poder seguir.

Berlim-Kreuzberg, julho de 2016.

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