Educação e Exclusão: os inaptos à EaD!

Marcos Francisco Martins*

Luciana Cristina Salvatti Coutinho**

Maria Carla Corrochano***

 A pesquisa “Condições e dinâmica cotidiana e educativa na RMS (Região Metropolitana de Sorocaba/SP – RMS) durante o afastamento social provocado pelo coronavírus” foi produzida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) campus Sorocaba – PPGEd-So – e desenvolvida por 15 pesquisadores(as) nos meses de abril e maio de 2020, período de afastamento social provocado pela pandemia de COVID-19.

O problema da pesquisa foi saber quais são os limites e as possibilidades que os(as) estudantes da rede de educação básica, pública e privada, estão vivenciando com as atividades escolares feitas em casa. Trabalhando tão só com o olhar dos(as) estudantes sobre o que eles(as) próprios(as) estavam a viver, fez-se uma pesquisa de tipo bibliográfica, documental e de campo, com enfoque qualitativo e quantitativo.

A pesquisa bibliográfica e documental foi realizada entre os dias 05/04 a 23/05 de 2020, empregando a Internet como meio de busca. Conseguiu-se, com ela, reunir uma atualizada bibliografia sobre pandemia e educação, que iluminou as análises dos dados coletados em campo e deu sustentação às 25 indicações aos poderes públicos e aos profissionais da educação, para adequadamente balizarem as ações que desenvolvem e que irão desenvolver quando do retorno às aulas.

Por sua vez, a pesquisa de campo contou com um questionário como instrumento de coleta de dados que, entre os dias 13 e 21/04, ficou disponibilizado na Plataforma Google Forms para os(as) estudantes dos 27 municípios da RMS responderem. O convite para participar da pesquisa foi feito utilizando a rede de contatos de docentes e discentes do PPGEd-So: e-mails, WhatsApp, Facebook etc. de professores(as) e gestores(as) educacionais. Foi solicitado que eles(as) fizessem o convite chegar aos(às) alunos(as) afastados(as) socialmente. Foram obtidas 1535 respostas, mas o tratamento dos dados acabou reduzindo para 1476 respondentes a “amostra por conveniência” investigada. No processo de análise, os(as) respondentes foram divididos em níveis de ensino: fundamental I (233 respondentes), fundamental II (618) e médio (625), e ainda por estrato: público (1265) e privado (211).

A pesquisa teve limites, pois contou apenas com os “incluídos digitalmente”, dada a situação vivida de afastamento social. Todavia, se teve algum mérito, talvez ele reside menos no resultado alcançado e mais na forma encontrada pelos(as) pesquisadores(as) para produzi-lo. Isso porque, para definir a aptidão dos(as) alunos(as) da RMS ao ensino remoto não foi considerado apenas o que o senso comum tem afirmado: com algum aparelho, o celular, por exemplo, e uma rede de Internet, os(as) estudantes podem fazer atividades escolares em casa. Diferentemente, a equipe de pesquisa definiu outra “métrica” para identificar a aptidão ao trabalho remoto, levando em consideração, além do equipamento e do acesso à Internet, outros elementos estruturais (condições de residência e tipo de banda de acesso à Web) e “psicopedagógicos”, como é o caso da disposição do estudante ao trabalho sugerido pela escola e a possibilidade de se ter no domicílio alguém para mediar as atividades. É esse modelo analítico, incrementado com mais elementos estruturais e psicopedagógicos, que a equipe de pesquisadores(as) pretende empregar em investigações futuras e foi por ele que se chegou ao índice lamentável de 41,68% dos(as) respondentes como inaptos ao trabalho escolar remoto, sendo que no ensino fundamental I e fundamental II os elementos estruturais são mais presentes como promotores de inaptidão, e no médio prevalecem os psicopedagógicos, que progridem ao longo dos anos escolares:

Tabela 1 – Impacto dos elementos estruturais e psicopedagógicos por nível de ensino

Níveis de ensino Estrutural Psicopedagógico
Respondentes Percentual Respondentes Percentual
Fundamental I 55 23,61% 29 12,45%
Fundamental II 186 30,10% 104 16,83%
Médio 144 23,15% 203 32,64%

Fonte: produzido pela equipe de pesquisadores(as) com os dados coletados.

Além desses, a pesquisa produziu outros significativos resultados, como a evidência de que as consequências educacionais do afastamento social não afetam a todos(as) da mesma forma, pois têm um recorte de classe, étnico-racial e de gênero. Em se tratando deste recorte, ficou claro que ser mulher durante a pandemia onera muito mais a pessoa, conforme demonstra a tabela a seguir.

Tabela 2 – O papel da mãe na mediação pedagógica das atividades remotas

Quem ajuda nas tarefas escolares Escola Total
Privada Pública
Amigos, primos, colegas… 10 61 71
Irmão ou irmã 7 46 53
Mãe 87 (76,99%) 415 (71,67%) 502 (72,54%)
Outros 6 22 28
Pai 3 35 38
Total 113 579 692

Fonte: produzido pela equipe de pesquisadores(as) com os dados coletados.

Além do exposto na Tabela 2, pelo total de respostas, as alunas são as que mais responderam que têm se dedicado aos trabalhos domésticos na quarentena (115 – 7,81%), quando comparadas aos alunos (41 – 2,78%).

Mesmo com limites, o questionário, indiretamente, apurou alguma evidência dos(as) alunos(as) da educação básica na RMS que não têm acesso à Internet, uma vez que foi perguntado aos(às) respondentes se conheciam colegas de sala que carecem dessa condição, eis o resultado:

 Quadro 1 – Quantidade de respondentes que indicaram conhecer colegas de sala que não têm acesso à Internet disponível em domicílio

Ensino fundamental I Ensino Fundamental II Ensino Médio
Privado Público Privado Público Privado Público
1 13 1 129 7 100
14 130 107
Quantidade total de indicações: 251 – 17,00% em relação ao total da amostra
9 pessoas – 4,26% do estrato privado (211 respondentes) – conhecem alguém que não tem acesso à Internet em domicílio
242 pessoas – 19,13% do estrato público (1265 respondentes) -conhecem alguém que não tem acesso à Internet em domicílio

Fonte: produzido pela equipe de pesquisadores(as) com os dados coletados.

A pesquisa ainda possibilitou perceber que, neste contexto de pandemia, para se garantir o constitucional direito à educação, é condição sine qua non tanto o equipamento digital, quanto boas condições de acesso à Internet. Desta feita, é responsabilidade do Estado garanti-los a todos(as) que não dispõem desses bens, pois se tornaram indispensáveis à civilidade democrática, isto é, se tornaram direitos humanos fundamentais, que devem ser efetivados como bens públicos, mesmo que muitos estejam agindo para torná-los direito privado objetivado na forma mercadoria.

Sem os equipamentos e acesso à Internet, as escolas não poderão se comunicar com os(as) estudantes em afastamento social. A propósito, entre os meios digitais empregados no contato das escolas com os(as) alunos(as), o WhatsApp foi a rede social predominante, citada por 750 respondentes (50,81%).

Dada a característica complexa do contexto atual de pandemia, os(as) profissionais da educação e as autoridades educativas, isoladamente, não conseguirão formular e implantar iniciativas que superem ou equacionem os problemas decorrentes da COVID-19, uma vez que as características desse fenômeno exige elaboração e implementação de políticas públicas intersetoriais, isto é, uma articulação dos(as) que se dedicam à educação com os(as) que lidam, no território da escola e do município, com infraestrutura, saúde, assistência social, cultura, esporte e lazer, bem como com os movimentos sociais e comunitários. Isso implicará tensão sobre a gestão das máquinas públicas, porquanto, historicamente, se caracterizam por formular e implantar ações de modo fragmentado, o que não responde à articulada e desafiadora conjuntura produzida pelo coronavírus.

Assim desenvolvida, a investigação fez emergir a necessidade de se realizar outra de mesmo perfil, mas com sujeitos diferentes: os(as) professores(as). Isso porque, mesmo na ausência deles(as), 57,09% dos(as) estudantes (692) está contando com alguém para fazer a mediação pedagógica das atividades escolares realizadas em casa. Na verdade, não há processo educativo escolar que prescinda de mediador(a) e o(a) professor(a) é esse sujeito. Imprescindíveis à educação escolar presencial ou a distância, os(as) professores(as) estão enfrentando dificuldades de monta ao tentarem garantir, por compromisso humanitário e profissional, mesmo sem a habilitação para tanto, um mínimo de mediação pedagógica com qualidade, por intermédio das TDIC.

 

* Docente do DCHE/UFSCar (Departamento de Ciências Humanas e Educação) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar campus Sorocaba (PPGEd-So), líder do GPTeFE (Grupo de Pesquisa Teorias e Fundamentos da Educação) e Bolsista PQ-CNPq. E-mail: marcosfranciscomartins@gmail.com

** Docente do DCHE/UFSCar, Coordenadora do PPGEd-So, Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil – HISTEDBR – GT UFSCar-So. E-mail: lucscoutinho@gmail.com

*** Docente do DCHE/UFSCar, do PPGEd-So e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Condição Humana – PPGECH da UFSCar Sorocaba. E-mail: carlacorrochano@gmail.com


Imagem de destaque: Marcos Santos/USP Imagens

 

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