Educação como prática de liberdade: a trajetória do filho e neto de escravizados que se tornou médico

Alexandra Lima da Silva 

Quantos vezes você já se consultou com um(a) médico(a) negro(a)? Uma visita as fotos de formatura nas paredes dos cursos de Medicina no Brasil é mais uma evidência do racismo estrutural, um dos legados da escravidão por aqui.

Num país em que a maioria da população se autodeclara negra, é violento e doloroso constatar que o direito a uma formação para salvar vidas é também um privilégio, assim como o direito de viver e seguir respirando.

Neste país de maioria negra, a existência de pessoas negras formadas em medicina acaba se tornando uma exceção, quando deveria ser a regra. Por isso, é importante dar visibilidade a experiência de médicos negros no Brasil, e compreender as estratégias de enfrentamento do racismo empreendidas por tais sujeitos.

Durante muitos anos, os manuais didáticos de história contribuíram para a reificação do afrodescendente como sendo sinônimo de escravo/coisa/mercadoria. As vozes dos escravizados não apareciam nos livros didáticos, apesar da existência de muitas autobiografias e narrativas em primeira pessoa de escravizados, por exemplo, desde o século XVIII. Defendo que por meio do estudo das escritas de si e das trajetórias de vida de pessoas negras no Brasil, é importante porque contribuiu para conferir visibilidade às      diferentes lutas e enfrentamento do racismo, num país em que a memória é um direito negado à maior parte de sua população, que é negra.

Outro legado da escravidão no Brasil é a extrema desigualdade em relação à educação brasileira, consolidada nos pilares do eurocentrismo, da branquitude e do racismo (DÁVILA, 2006). Conhecer e estudar outras histórias é um movimento necessário e ajuda no processo de reconhecimento do processo de silenciamento e negação dos direitos de cidadania no Brasil. É preciso também, reconhecer o protagonismo e às ações diversas dos sujeitos historicamente discriminados e silenciados, na luta por dignidade, liberdade e igualdade.

No âmbito das pesquisas no projeto Flores de ébano: escritas de si, trajetórias e  história da educação[1], localizei uma família de homens e mulheres negros na qual me chamou a atenção a trajetória de Israel Antônio Soares Júnior, filho de Israel Soares, um liberto e abolicionista que integrou a rede de intelectuais negros e abolicionistas do Rio de Janeiro na década de 1880.

Israel Antônio Soares Júnior tinha acabado de se formar médico, quando, faleceu aos 26 anos, deixando esposa e três filhas pequenas.

A morte do jovem médico gerou forte comoção nos jornais cariocas em 13 de agosto de 1913. No anúncio da missa de sétimo dia pelo falecimento de Israel Soares Jr, a foto estampada no jornal A Imprensa de 1913 traz um homem negro de pele escura, de óculos e beca. Esta era a foto da formatura no curso de medicina no qual Israel Júnior acabara de concluir, com louvor.

Quando Israel Antônio Soares Júnior nasceu, em 1886, seus pais, Israel Soares e Antônia Botelho Soares já tinham conquistado a liberdade por meio de auto compra da carta de alforria. Os avós paternos de Israel Júnior também eram africanos, e foram trazidos para o Brasil como escravizados. Luíza, a avó paterna, era preta mina e com o esforço do próprio trabalho como quitandeira, comprou a alforria. Diferente da mãe, que era muçulmana, Israel Soares era católico e pertencia à irmandade religiosa da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Israel Soares, o pai de Israel Júnior, esteve a frente de uma escola noturna para escravizados e libertos em São Cristóvão e fez parte do movimento abolicionista carioca.

Com o apoio da família e da comunidade negra do Rio de Janeiro no início da República, Israel Soares Júnior estudou Farmácia, e após, concluir este curso, ingressou na Faculdade de Medicina. Recém-formado, abriu um consultório em São Cristóvão. Provavelmente, tinha o projeto de retribuir à comunidade que contribuiu para que um homem negro, jovem, filho e neto de escravizados, pudesse romper com as correntes do racismo estrutural e salvar as vidas. Mesmo com a ausência de políticas públicas de reparação da dívida histórica da escravidão, sujeitos como Israel Soares Junior ascenderam socialmente por meio da educação. Sujeitos invisibilizados, contaram com uma rede de apoio de amigos e também da família para ocupar um espaço que lhes foi negado historicamente. Ousaram cantar em voz alta as letras da liberdade. Que tais vozes não sejam reprimidas e sufocadas pelos “olhos que condenam.”


¹ Projeto de pesquisa financiado pela FAPERJ e pela CAPES.

Referências:

DÁVILA, Jérry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil – 1917- 1945. São Paulo; Editora UNESP, 2006.

SILVA, Alexandra Lima da. Pela liberdade e contra o preconceito de cor: a trajetória de Israel Soare. REVISTA ELETRÔNICA DOCUMENTO/MONUMENTO, v. 21, p. 1-17, 2017.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil Oitocentista. 1. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.

Imagem de destaque: Jornal A Imprensa, 19/08/1913, p.1

 

 

 

 

 

 

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