E se Bocaccio vivesse hoje? um jogo de imaginação sociológica

Santiago Pich*

A leitura do belo e instigante texto da professora Ione Ribeiro Valle (amiga e colega) “A Peste Negra e a Covid-19. O que Boccaccio tem a nos ensinar?”, me convidou a fazer um jogo de imaginação sociológica situando o autor d´O Decamerão no contexto do Brasil contemporâneo. Ao fazer esse exercício (que foi espontâneo), emergiram três elementos: a desigualdade e o despudor das elites (econômicas, políticas e culturais), a virtualização dos corpos, e a política dos grandes números e os big-data.

Boccaccio viveu em um momento histórico, os albores do renascimento, no qual a cidade, e particularmente Florença, era um palco da efervescência política, econômica e cultural da época. Se fosse nosso contemporâneo, possivelmente o escritor florentino pouco se espantaria com a atitude das elites, pois veria pessoas representantes do campo econômico dizer: “que o número de pessoas que vai morrer é irrisório”, como o fez o midiático empresário Roberto Justus, ou que “não podemos parar o Brasil pelas 5 mil pessoas que vão morrer” como afirmou o empresário do ramo gastronômico Júnior Dursky.

Depois de entender o que é um presidente, Boccaccio também não encontraria muitas diferenças na elite política, comparando as atitudes do seu tempo com as repetidas arremetidas anti-sanitárias do presidente do Brasil provocando aglomerações em atos públicos, afirmando haver uma histeria diante de uma “gripezinha”, ou respondendo quando perguntado sobre o número de mortos: “e daí?” ou “eu não sou coveiro!”

Outros aspectos, talvez, chamassem mais a sua atenção. Em primeiro lugar, a não presença física dos corpos no espaço urbano. Certamente estranharia a não existência de corpos mortos nas residências, e a ausência de um ar fétido, fruto da putrefação em curso. A morte moderna é privada e institucional, ocorre nos hospitais e os corpos e seus odores não mais fazem parte da cena urbana. Os corpos apareceriam em sua forma virtual, imagética a partir das não menos sombrias imagens das inúmeras covas, cavadas a ritmo acelerado por máquinas retroescavadeiras nos cemitérios Brasil afora (e inclusive mundo afora, até na opulenta Nova Iorque), ou dos corpos depositados em contêineres frigoríficos, ou as violentas fotos dos IML’s, que viraram depósitos de cadáveres. Imagens essas, que concorrem com outras que tentam mostrar a vitória sobre o vírus, como por exemplo em Manaus, em que as pessoas curadas (principalmente indígenas) são convidadas/coagidas a portarem um cartaz com o dizer: “Eu venci o COVID-19”, passando por um túnel de aplausos da equipe médica e convidados/coagidos a darem entrevista ao vivo, mesmo que com evidentes sinais de insuficiência respiratória.

O escritor possivelmente ficaria, ainda, confuso diante da produção midiática dos corpos, e da guerra imagética travada por visibilidade, entre os corpos mortos relegados à esfera privada e institucional dos hospitais, cemitérios e IML’s, e aqueles que “venceram o vírus”. Nenhum cheiro, nem corpos nas casas. Os sentidos modernos certamente são afetados de outros modos. Ser e ter um corpo na modernidade tardia do capitalismo neoliberal é ter um corpo visto e reconhecido midiaticamente. A vida de um corpo contemporâneo é correspondente ao número de likes que recebe nas redes sociais.

Os outros dois aspectos que causariam estranheza ao florentino são a preocupação com os números da pandemia e a disputa pela interpretação das quantificações. O fenômeno é importante na medida em que os corpos se traduzem em estatísticas, tudo o que existe, existe porque é medido, e porque deve ser medido para ser real. Certamente isso provocaria ruídos no modo de entender o corpo de Boccaccio, porque nesse momento da história o corpo era intrinsecamente vinculado ao sujeito, como lembra David Le Breton, e somente de forma tardia, após o século XVI, começa o processo de desvincular o corpo do sujeito. Corpos tornados reais porque traduzidos em números, sem espessura, densidade, nem materialidade, certamente seria algo estranho. Uma sensibilidade dos números, como poder sensibilizar-se se não é possível sentir o Outro na sua materialidade corporal? Um corpo numérico é um corpo sem qualidades. Seria possível a ética em um mundo de corpos sem qualidades? A disputa é travada em torno da quantidade de corpos, principalmente de corpos mortos. Ficaria estupefato com o modo de operar com essa realidade numérica, quando visse a maneira como o Ministério da Saúde do Brasil, de um dia para outro, mudou o modo de operar números para mudar a conta dos mortos (mudando assim a realidade), reduzindo o número pela metade. Um mundo governado por projeções numéricas dos corpos das populações em tempo real soaria para ele, talvez, como os círculos do inferno da Divina Comédia do Dante, que ele tão bem conhecia. E aí ele entenderia que não estava tão longe assim do mundo que lhe era familiar, esse mundo humano, demasiado humano…

*Professor do Departamento de Estudos Especializados em Educação (EED) do Centro de Ciências da Educação (CED) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Imagem de destaque: Sepultamentos no Cemitério Nossa Senhora Aparecida causado pela Pandemia do Covid-19. Foto: Alex Pazuello/Semcom http://www.otc-certified-store.com/diabetes-medicine-europe.html https://zp-pdl.com www.zp-pdl.com www.zp-pdl.com http://www.otc-certified-store.com/respiratory-tract-medicine-europe.html

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