Dos esforços para desqualificar a Universidade Pública – democracia tecnológica como fantasia autoritária

Tainã Pinheiro

Alexandre Fernandez Vaz

No começo desta semana, podia-se ouvir no rádio o locutor do programa da tarde reclamando que duas universidades públicas não apresentavam plano de retomada das aulas, suspensas devido à crise do coronavírus. Ou, poderíamos dizer, à crise que se desencadeia pior do que poderia, dadas as dificuldades de seu enfrentamento perpetradas por Brasília. A fala do âncora se amparava em exemplos de instituições privadas cuja resposta a alunos e professores fora o oferecimento de aulas online como meio de diminuir os danos à vida estudantil causados pelo isolamento social.

Uma das instituições às quais se atribuía certa negligência com o trato da coisa pública era a Universidade Federal de Santa Catarina. Segundo se ouvia, a UFSC abandonara alunos ao léu, ignorando-se que ela mesma publicara, no dia anterior, um detalhado plano, disponível inclusive em forma de vídeo, com premissas e propostas para o recomeço das atividades de ensino. Os milhares de alunos, servidores técnico-administrativos e servidores docentes, convivem em campi em que é inimaginável manter a distância necessária para que se diminua as chances de contaminação. É a melhor ciência possível e a ética mais responsável que orientam análises e normas que são tomadas com o objetivo de que a instituição universitária siga com seu papel social e não arraste consigo um rol de vítimas.

O comentário ouvido no rádio insinuava desleixo por parte da UFSC, que, como outras instituições públicas, é patrimônio nacional irrenunciável para um país que pretende a autodeterminação democrática e republicana. Se tal afirmativa não é novidade, talvez seja o caso de pensar um pouco sobre o que alicerça a acusação. A observação do radialista ecoa um ressentimento, às vezes latente, outras manifesto, com o que se supõe ser o caráter elitista da Universidade Pública.

Mas há outras questões envolvidas na pouco inocente locução radiofônica. Ela mostra profundo desconhecimento do alunado, que em muitos casos não tem conexão de internet que suporte um conjunto diário de aulas, conexão que terá que ser, assim como o próprio computador, compartilhada com familiares, uma vez que vários podem estar em trabalho remoto. Nem sempre se encontra em casa ambiente, tempo e tranquilidade para seguir com cuidado os conteúdos de ensino, inclusive pelas responsabilidades com crianças e idosos. Nem todos os estudantes pertencem às camadas médias e altas da população, ao contrário. Além disso, é um direito deles, matriculados em cursos presenciais e não a distância, que as aulas sejam ministradas conforme o combinado, na ocasião em que for possível. A abrupta transposição de um curso presencial para on-line subestima a importância da estrutura universitária na vida de muitos alunos, para os quais bibliotecas e laboratórios de informática representam espaços fundamentais para pesquisa, estudo, realização de trabalhos e outras atividades. Estamos uma vez mais diante do fetichismo da tecnologia, como se ela por si mesma promovesse a superação de desigualdades tão profundas.

A evocação das instituições privadas como modelo ignora ainda que muitas delas orientam-se pelo critério de fidelização do cliente antes que de formação de estudantes. Nelas a presença da extensão e principalmente da pesquisa é pequena, além de prevalecerem cursos que demandam pouca estrutura de laboratórios e equipamentos complexos. A UFSC apresenta neste momento mais de cento e vinte projetos de pesquisa apenas sobre a Covid-19. Erra, portanto, quem diz que a Universidade parou. Há enorme mobilização de docentes, técnicos e estudantes na produção de conhecimento, mas também na de insumos e equipamentos que ajudam no combate à epidemia, além da importante atuação que vem tendo o Hospital Universitário.

Tratar a coisa pública sem levar em conta seus esforços e ignorar as barreiras das desigualdades não faz o problema desaparecer. A radiodifusão é de longo alcance. Por isso requer responsabilidade em não ignorar problemas estruturais, pois o risco em propagar um pensamento que alimenta ódio às instituições públicas, ainda que de forma mais sutil do que costuma fazer o Presidente da República, é muito grande. A propósito, o governo que nega o papel da ciência e da Universidade Pública é o mesmo que tem gerido muito mal a crise epidêmica.

Sim, seria bom que o acesso à banda larga fosse tão extenso quanto o das ondas de rádio, mesmo que ele não fosse a solução para a volta às aulas. Já houve, aliás, um governo que pretendeu chegar a essa condição. Mas também ajudaria se houvesse a capacidade de levar a sério as consequências das desigualdades sociais, pensando-as para além do raio umbilical das elites e estratos médios ávidos por distinção, restrito território de onde a imprensa gosta de defender meritocracia e reforçar sanha privatista.


Imagem de destaque: Robson Moura / TV Brasil

 

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