Do ideal e do necessário – a democracia não atende por liroliro –

Ivane Perotti

“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”   

João Guimarães Rosa

Sombras do descabido invadiam as soleira das portas. Ninguém entrava ou saía da comunidade. A ladeira fora fechada. Nem a guarda de costume permanecia em guarda. A doença matava a raiz das vontades e se espalhava como um rastilho de pólvora sobre cimento seco. As crianças, recolhidas no susto e no medo, não espiavam pelas janelas trincadas. O pavor rendia as mães cicatrizadas nas tragédias do posto. Sobreviver à cria parecia injusto. Tão injusto quanto pagar o preço do não vivido. Nascer entre os desprovidos descumpria a fábula: imoral.

— Ô, seu Zeca. Si a genti não tomá atitudi, nóis vai morrê.

— Feito pulga.

— Feito rato.

A contaminação pela doença isolara-os de fora para dentro. Barricadas de madeira e ferro blindavam a entrada. A segurança cumpria turnos armados. Sem saída e sem atendimento, os ainda saudáveis despachavam os corpos enrolados em plásticos grossos.  Por sobre os cavaletes, iam-se vizinhos e parentes. Filhos e mães. Pais e filhos. Irmãos e irmãs. Os pedaços das famílias ficavam aos pedaços. Cada qual aguardando o momento de passar para o outro lado. Sem vida. Sem a vida que agora atracava com peso de decisão tomada. Tomada por outros, por aqueles que lhes negavam a dignidade até na hora da morte.

— Mais um, seu Zeca.

Alguns escolhem e podem pagar pelo vazio dos sentidos. Outros, pagam sem sentido pelo vazio que alguns escolhem. Aquela comunidade não era “produto” no comércio dos projetos políticos: sem saneamento básico, as crianças e os adultos, não passavam de um borrão no mapa das civilidades. Fatigados pelas necessidades, desnutridos de sonhos, sem esperança, sobreviviam de acordo com a sorte.

— Eu queria conversá com a vida…

— Nóis já conversa, seu Zeca. Já conversa…

— Não é “dessa” vida qui falu, é da ôtra! Prá que qui existi tantas diferença? Nóis aqui morrendo e eles lá…

— É o destinu, é o destinu.

—Não existi destinu! Nóis fazemu o destinu, cumpadre. Nóis! E não tamo fazendu nada!

A voz do pipoqueiro arrastou lágrimas de inconformismo.

— Quem sabi da genti? Tamo sendu debuiados da espiga.

— Ô, ô seu Zeca. Nóis não têm espiga.

— Claro que não! Somo os indesejadu! Os sem nada…

— Ah! Isso, semu! Tá vendu quanta genti prá guarda nóis aqui?

— Guardá?

— Só modu de dizê, seu Zeca! Só modu de dizê!

Eram tantas mortes que a comunidade, rica em barulhos, calara-se. Das casas saíam os silêncios da dor. Se ia um, o outro não contava os dias. Se alguém soprasse a tosse, o medo da doença deixava de ser ilusão. E foi assim por muitas semanas. Os que arriscaram fugir, não voltaram. Os que ficaram, sem água potável, sem remédios, sem acesso ao mínimo de proteção, aguardavam a hora.

— Nóis semu filho da morti!

— Não, José. Nóis somu os restu da história.

— Qui história ruim.

— Vamo mudá issu.

— Tem jeito?

— Tem!

Das casa trincadas, alguns olhares dobraram o silêncio. E sem sair para fora, abriram espaço. Naquele dia, o seu Zeca, cantando para os mortos, chamou os vivos:

Apesar de você
Amanhã há de ser

Outro dia

Eu pergunto a você

Onde vai se esconder

 […]
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar

O perdão
[…]
Água nova brotando

E a gente se amando

Sem parar.
(Chico Buarque, música: Apesar de você)

 Referências

BUARQUE, Chico. Apesar de você. Letra e música. Compacto simples. 1970.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Originalmente publicado em 1956.


Imagem de destaque: Priscila Paula

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