Do educar para a educação

– sobreviventes das desigualdades nas trincheiras da vida –

Ivane Perotti

“Sobrevive

à aridez

das mãos

talhadas

Na enxada

que corta a carne

abre a cova

e enterra

a desilusão.”

(Socorro Nunes)

Viera em confiança o pai motivado. A escola era o seu único recurso para alimentar com futuro o rebento menor. Os outros filhos, perdidos na morte e na vida, desconheciam as letras. Reduzidos a números na carroceria de caminhões, números nas lavouras, números nas colheitas de tomate, números nas olarias e fornos de carvão. O mundo os levara em penca.

Migrante, o pai de Vicente entendia o peso da educação na vida de uma pessoa. Restava-lhe tão somente a hombridade depois de tantos anos de trabalho e penúria. A cidade grande amedrontava-o. Mas prometera à esposa em leito de morte que daria escola ao filho. Tomara a estrada como uma expiação para si e uma redenção para o menor. Vivia de pequenos bicos aqui e lá. E quando chegou a hora, o caminho assinou o compromisso: matriculou o filho na escola. Ficava perto do morro onde morava em um cômodo. A escola era grande, não cobrava mensalidade para o menino ficar o dia inteiro, servia boa comida e muitas aulas. Muitas aulas, contara Vicente. Tudo isso era bom.

A felicidade na esperança não durou pelo tempo das necessidades. Estava ali, outra vez, diante da porta fechada. Esperava pelas folhas que a diretora entregaria. Folhas para os cadernos de Vicente. A diretora marcava o dia e ele comparecia, a cada vez mais angustiado. Não tinha recursos para um celular, menos ainda para uma televisão. Sua casa resumia-se a uma cama para o Vicente e um fogão velho. Dormia no chão, feliz por ver a alegria do filho que ia para a escola. Mas a doença chegara lá também. Agora, diziam que a aula seria pela televisão, pelo celular. Não entendia, mas aprendera a obedecer. Buscava as atividades para o filho sem reclamar.

Os vizinhos convidavam o seu menino para ver a escola na televisão. Todo o mundo olhava. Ele não entendia nada. Fazia esforço, mas não entendia. E para piorar, ao voltar para o cômodo, Vicente fazia perguntas. Havia lições para completar. Aquelas folhas cheias de letras e números aumentavam-lhe o desespero e a vergonha. Desconhecia as letras, não sabia usar o lápis, nunca folheara um caderno. Ele sabia trabalhar no que aparecesse pela frente. Não negava serviço. Desde bem pequeno, só conhecera a dureza. Os serviços não olhavam a idade. E fora assim com o seu pai, o pai de seu pai e o pai antes dele. Era a vida de quem nascia do lado de fora da janela.

_ Pai!?

_ Ô, fio. Me perdi nas venta. Diga!

_ Eu não sei fazê isso aqui…

Já pedira muita ajuda aos vizinhos. Não estava certo incomodá-los a cada lição de Vicente. Mesmo porque, o número de filhos que eles tentavam ensinar, em idades diferentes, era grande. As crianças em casa estavam dando trabalho.

_ Fio, vá dormi. Amanhã o pai ajuda…

Vicente recolheu os cadernos de sobre a cama e os colocou junto à mochila que ganhara na escola. Até uniforme o seu menino ganhara. Boa escola. Fazia falta.

Não demorou a adormecer o pequeno e a aumentar o sofrimento do pai. A pilha de cadernos ganhou vida. Agigantou-se. As letras saíram das folhas e roçaram as suas mãos calejadas. Os números caminharam sobre o piso riscando-lhe os braços. Nunca escrevera o próprio nome, usava o polegar. As folhas de caderno deixaram-no febril. Precisava ajudar o filho, precisava cumprir a promessa feita à Gertruda.

_ Ah! Muié…ocê até qui daria conta dissu. Mas eu…eu sou um matuto…

Da febre ao movimento, o pai de Vicente abriu a porta do cômodo para beber a lua. E talvez tenha sido ela a inspirar-lhe. Trêmulo por dentro e por fora, levou os cadernos ao colo.  Encontrou a caligrafia do menino. Parecia desenho. Uma letra de cada vez, algumas letras juntas, várias letras grudadas. A escola era importante demais. A esposa falecida entendera a vida.

Muitas folhas e letras depois, procurou Gertruda por entre a míngua da lua. Conhecia bem aquele quarto: quando a lua minguava, era a hora dos homens tomarem tenência. Sombras descontroladas ganhavam um naco maior. A lua soletrava: “_ Aprepare-se, homi! Aprepare-se!”

Quando Vicente acordou na manhã seguinte, encontrou o pai “apreparado”:

_ Fio…nóis vamu aprendê junto. Me ensina as letra… eu te insino a lição.

Referência

NUNES, Socorro. O que ficou da fotografia. Recife: Linguaraz Editor, 2026.


Imagem de destaque: Priscila Paula

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *