Discurso de guerra pelo Coronavírus é discurso de guerra contra a vida

Tiago Tristão Artero

Ao exaltar o ministro da Saúde, esquecem-se de que ele advoga pelo mesmo projeto neoliberal do seu chefe. Sendo ex-presidente da maior rede de assistência médica particular, autodenominada ‘maior cooperativa do mundo’, em 2019, disse que a regulamentação dos planos de saúde (dentro disso, das suas mensalidades) era “extremamente engessante e restritiva”.

Ao reunir-se com outros integrantes do governo, dentre eles, a ala militar que está no controle do Brasil, o médico Mandetta abandonou (sim!) parte dos pacientes. Num acordo político, abriu mão do isolamento social e estabeleceu três níveis de isolamento, ou seja, um isolamento seletivo (a depender da capacidade de atendimento na área de saúde de cada cidade). Ou seja, os pacientes continuarão vulneráveis, a diferença é que poderão se contaminar a depender da possibilidade de atendimento hospitalar.

Afinal de contas, a economia não pode parar (ironia). Lucro acima da vida já é uma realidade desde os primórdios do capitalismo.

Daí a importância de uma visão crítica acerca das coisas, uma visão que contrapõe a ideia de que o jejum é a solução para acabar com o coronavírus. No máximo, melhora os índices do sangue.

Por isso, buscar outras visões de mundo é urgente. Visões (e há muitas) que valorizam a diversidade e que a vida esteja acima do lucro. Aliás, pra que lucro?

Não é de se estranhar que, no cenário político atual, as raposas são colocadas para tomar conta do galinheiro… umas raposas mais famintas do que outras. Aí está a contradição aos artigos da Constituição Federal de 1988 que estabelecem que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Este discurso ‘de guerra’ se coaduna com medidas que restringem o investimento público.

Na prática, este discurso alinha-se à sensação de que estamos em guerra, e, a partir daí, tudo se justifica. O orçamento de guerra está aí para justificar isso. No artigo “Como ainda não pensamos na vida?”, destaquei o quanto a visão de mundo está atrelada às políticas públicas que notamos em curso hoje.

Num mundo bélico, o acúmulo de capital e o uso de eufemismos para justificar ações terríveis parecem regra. Encontramos estas expressões em “colonização do Brasil” (no lugar de aculturação dos povos ameríndios e genocídio deste povo e das negras e negros), “branqueamento da raça” (no lugar de eliminação da ‘raça negra’) e “orçamento de guerra”.

Para além da PEC dos gastos, que já indicava a desvalorização da vida em diversos aspectos, o orçamento de guerra, sob o pretexto de defender a vida, usa esse ‘coringa’ chamado ‘guerra’ para, se necessário, extrapolar a temática do orçamento e implementar práticas em muitas áreas que advogarão orbitando o neoliberalismo, sob o risco de, a médio e longo prazo, consolidar mecanismos que atentam contra a vida. No caso da educação, apressam-se para testar o EAD e, ‘se emplacar’, será uma realidade de distanciamento entre as pessoas e desvalorização da educação, a depender dos objetivos não declarados.

Por mais uma vez na história, a pretexto de defender a vida, utiliza-se uma palavra (guerra) que, na prática, significa exatamente o contrário, apesar da tentativa do cinema de glamourizar os confrontos entre países como sendo algo que trará algo melhor para todos.

O ministro da saúde indicou que o vírus circulará, de maneira significativa, até setembro de 2020. Há previsões que apontam uma relativa tranquilidade somente quando da aplicação em massa da vacina contra o covid-19, algo que poderá ocorrer daqui a 2 anos.

Até lá, os arranjos produtivos tomarão outras formas de organização e a hostilidade do capitalismo poderá se apaziguar ou se intensificar. É hora de entendermo-nos como parte de todos os processos planetários, situando-nos numa crise política e ecológica.

As reflexões decorrentes das privações provocadas pelo coronavírus e as novas formas de consumo poderão apontar para uma busca por processos mais sustentáveis. Mas isto é somente uma possibilidade que depende do acúmulo de conhecimento e da compreensão, por parte da classe trabalhadora, de que seus braços e seu cérebro representam não somente o lucro, mas a produção das condições que mantém a vida humana. Então, por que não buscar condições mais dignas e igualitárias destas produções?

O colapso do capitalismo virá, seja pela área econômica, seja pela via ambiental. Aos que enxergam a ‘ideologia da guerra’ (e como não lembrar, do ‘ódio’?) como algo nocivo a compreensão de que não estamos no topo da cadeia animal, mas estamos inseridos no ‘todo”, esta pandemia servirá para que os meios de produção se modifiquem e novas práticas se incorporem na organização social.

A ciência tem um papel importante na compreensão de que o orçamento de guerra, baseado no ‘discurso de guerra’, não é o caminho para a humanização e sustentabilidade. Por isso, devemos repensá-la e entender que “as ciências” de outras culturas, ainda preservadas (como as dos povos ameríndios), têm muito a contribuir para a continuidade da vida, em todas as suas formas.


Imagem de destaque: Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (esq.) e o Chefe da Casa Civil General Braga Neto (dir.). Foto: Isac Nóbrega/PR

 

 

 

 

 

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