Didática da violência – parte II

pedras pedagógicas criam orelhas 

Ivane Laurete Perotti

“[…] presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História” Paulo Freire.

Sem que se dessem conta, a menina Tina faltava às aulas com regrada rotina. Não se poderia dizer que nos últimos quinze dias frequentara a sala mais de duas vezes. Sua presença ou não presença tinha status de armário. Se estiver na sala, existem aqueles que tentam arrombá-lo, afinal, as professoras devem guardar coisas interessantes dentro dele. E existem aqueles que lhes reclamam a validade não coletiva. Por último, os outros, que entram e saem e jamais vêem o armário de duas portas colado à parede. A escola é uma arena adolescente em luta por lideranças e regras.  As “quebradas” estão bem debaixo dos pés despreparados: cada qual lida com a forma que melhor se ajusta. Neste dia, por razões apenas suas, Tina compareceu à aula. A mesma mochila vazia, ausente do conhecido caderno.

_ Tina, onde está o seu caderno?

_… terminou!

A sala de aula emudeceu. Uma carga elétrica suave e doce passou dos braços de todos para o rosto de cada um. Tina falara! Ela tinha voz! E a voz era linda! Era… era muito diferente. Parecia fazer cócegas no ouvido e na pele.

_ T… ter…terminou?

Tina balançou a cabeça concordando.

_ Minha menina, eu nunca a vi escrever nele…

Tina levantou a ponta dos olhos negros e acionou o sentido de… sim, eu escrevo. Eu escrevi.

_ Certo! Certo, Amanhã, sem falta, você traz o caderninho cheio para a professora olhar, está bem? Tem de trazer. Precisamos corrigi-lo.

Tina concordou com a cabeça e a manteve no lugar de costume: olhos fincados na mesa, olhos fincados no chão. Enquanto isso, a professora providenciava uma folha sem pauta, em branco, para ela transcrever os exercícios do dia.

A aula recebeu a sua quantia de estranheza, mas fora a primeira vez que ouviam a voz da garotinha e a voz era espetacular. Será que ela era uma cantora disfarçada? Ou de tanto economizar a voz, quando falava saía aquele som tão belo, tão certinho, tão doce? Os coleguinhas impactados pelo ocorrido não sabiam se tentavam falar sobre o assunto, ou calavam-se para não gastar a rabiola da lembrança. Muitos olhavam diretamente para ela que não os percebia. Diante da folha em branco, Tina parecia deslizar algo, mas os longos cabelos crespos mantinham distância dos curiosos.

Quando o sinal do intervale ecoou pela escola, as crianças carregavam fomes de todos os tipos: dividir o lanche, descobrir o prato da cantina, repeti-lo, trocar biscoitos e aí afora. Mas Tina não saíra da sala. Mesmo com a insistência da professora, ela ficou onde já estava. O cabelo denso e preto cobria-lhe os olhos, o papel e o que mais estivesse fazendo nele. Nada e ninguém teve acesso ao que a menina fazia. E curiosamente, ela não recebera os xingamentos comuns ao universo de sua presença na escola. Esqueceram-se de chamá-la equina, caprina… esqueceram-se.

O retorno do intervalo passou por todos os estágios de acomodação, de chamadas de atenção mais diretas, de apelos, de convites a sentarem-se, de iniciarem a aula, até o ápice da voz mais irritada e direta da professora. Pronto! Dava-se início ao segundo período da tarde,

_ Crianças, vamos conhecer algumas músicas para escolhermos uma delas. Faremos uma apresentação no Show de Talentos da escola, no próximo mês. Hora imprópria para juntar a efervescência do intervalo recém-encerrado com o natural desejo de fruição musical. A sala transformou-se em uma arena sem comando. Discussões sobre a melhor música, quem melhor cantava, o quanto era ridícula aquela atividade, que ninguém se escreveria, até os que já ensaiavam para um público barulhento e julgador. Tenho dúvidas se a professora não sentiu desejo de encerrar a sua profissão. Muitos gritos de “organizem-se” não tiveram eco. Mas de um modo homogêneo as vozes baixaram o tom, uma a uma e voltaram-se para a cadeira de Tina. De dentro da caverna intocada e assegurada pelos longos cabelos crespos, vazava uma voz nunca ouvida. Tina cantava em inglês e alguém já disse que era Beyonce. Outro falou que era profissional e cantava para uma orquestra. A professora sussurrou: Janes Joplin, Elza Soares, Elis Regina… Joan Jett… Maia Bethânia… Gal Costa… e segurou a cabeça por entre as duas mãos, enquanto esfregava a têmpora para receber clareza de algum lugar, fosse aquele que fosse.

Tina cantou por longos minutos, silenciando os seus colegas e fazendo acorrer à sala os curiosos de plantão. Cantou, sacudiu a cabeleira, gingou os ombros, dançou com o pescoço elegante, mas não parou de rabiscar na folha branca entregue pela professora. Alguém afirmou vê-la sair da cadeira, mas era só o desejo de que tal ocorresse. Tina não saiu de seu lugar e a ninguém encarou.

Tão de repente como começou, a menina encerrou a quarta música. Ninguém falava. Ela ganhou os minutos mais precisos: a sala presente, quente pelos corpos tão próximos, agradável pela reunião de amigos, segura pelas mãos de tantos colegas. Quando desceu o bracinho sobre a folha branca, ergueu a cabeleira que expôs dois olhos iluminados pela felicidade da comunicação. Estava plena! Fechou a mochila vazia e entregou o papel branco à professora. Como um aviso de recado sem sentido, Tina parou à porta da sala e ensaiou um quase sorriso. Mas os lábios não se moveram. Apenas os olhos tocaram a todos e a cada um a seu modo.

_ Tina! Tina!

Era a professora aos berros, segurando o papel em suas mãos:

_ Tina…

Tina saíra. Deixara nas mãos da professora os traços mais carregados de sentidos que ela já vira. Desenhara os colegas com a perfeição de um grande estudioso de desenhos. Desenhara a própria professora. Desenhara as crianças com as marcas que lhe eram próprias.

Sentida por não poder interpelá-la, a professora guardou a vontade de saber mais no dia seguinte. Contudo, não pode desligar-se do quadro feito à mão livre e lápis preto. Era um desenho maduro, firme, digno de um artista com muito estudo e conhecimento da vida. A noite carregou  curiosidade entre todos da escola. Não sei se pode dizer que alguém dormiu. De um modo diferente, entre aqueles que haviam tornado a vida de Tina um grande pedregulho, pintava algo como culpa e feiura. Logo cedo pediriam desculpas. Com certeza! Tímida, diferente, mas era um direito, né? Ela poderia ser quem quisesse.

Na manhã seguinte, os alunos acotovelavam-se esperando o sinal para entrar.

_ Abre, dire! Abre!

Uma moça alta, em torno de uns quarenta anos passa à frente dos meninos. O sinal bate e todos correm para as suas salas. Apostas rodavam livres: quem acertaria?

A professora entrou em silêncio. Alunos sentados, quietos, esperavam algo, mesmo sem saber o quê.

_ Fala, ò profe! Fala!

_ A Tina… a Tina faleceu durante a madrugada.

_ …

_ Ela sofria de leucemia, desde bebê. A sua tia nos contou que nunca antes ela esteve tão feliz como aqui na escola. Então… esse desenho que mostra muito de cada um de nós…deve servir para lembrarmos dela para sempre!

_ Mas… é… eu… a tratava mal.

_ Vamos poder falar sobre tudo isso, fulano. Comece você a observar o quadro que ela desenhou.

_ E a voz, profe?

_ Ah! A voz… certamente ela teria se tornado uma cantora famosa!

CONTINUA…

REFERÊNCIA

 FREIRE, Paulo.  Educação e mudança. 30ª ed.; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007, p. 54.


Imagem de destaque: Priscila Paula

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