Deseducação Política (A propósito do 11 de Setembro)

Alexandre Fernandez Vaz

Em 2002 veio a público o projeto cinematográfico 1109″01, reunião de onze curta-metragens com duração de onze minutos, nove segundos e um frame. Realizadores de diferentes partes do mundo puderam compor seus trabalhos livremente, sempre tomando em conta o atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro do ano anterior. Malgrado a esperada desigualdade entre as iniciativas, o resultado é muito bom.

Um dos filmes é do britânico Ken Loach, que eu conhecia por anos antes ter assistido a Land and Freedom, de 1995, sobre a Guerra Civil Espanhola. O curta interpreta o 11 de setembro a partir de um episódio ocorrido exatamente dezoito anos antes, na mesma data, o golpe militar que destituiu o presidente eleito Salvador Allende e interrompeu a experiência política de justiça social e organização popular que se desenhava no Chile. Vemos na tela um exilado chileno em Londres e ouvimos a narração de uma carta que ele escreve a estadunidenses para expressar solidariedade, mas igualmente a fim de lembrar o que vivera havia quase duas décadas. As imagens dos aviões se chocando contra as torres nova-iorquinas se mesclam com as do bombardeio do Palácio de La Moneda, onde Allende resistia.

A primeira vez em que fui ao Chile deparei-me em Santiago com uma longa avenida comercial no bairro Providencia, batizada de 11 de Setembro. Pareceu-me inacreditável que se pudesse homenagear o golpe nomeando uma das artérias mais importantes da cidade com a data de sua realização. Isso durou de 1980 a 2013, quando o nome original, o mesmo do bairro, foi retomado. Minha surpresa era, no entanto, tola. Eu sabia que o ditador Augusto Pinochet gozava de prestígio entre muitos chilenos, alguns eu mesmo conheci por aí. Milhares de mortos (entre eles alguns brasileiros), centenas de milhares de exilados, intervenção nas universidades – Klaus Meschkat, de quem fui aluno na Alemanha, era professor em Valparaíso e foi detido porque era professor de Sociologia. Na opinião de muitos, não, já que o desenvolvimento econômico se deu e o comunismo não prosperou. Melhor seria reconhecer que o Chile foi o laboratório latino-americano do neoliberalismo, tendo sido Pinochet seu fiador, e que a experiência socialista que ali se desenvolvia pouco tinha a ver com o que se passava nos países do Pacto de Varsóvia. Aliás, as tentativas de um socialismo que pudesse chegar a ser democrático foram solapadas pelos soviéticos, como em 1956, na Hungria, e em 1968, em Praga.

Na manhã de 11 de setembro de 2001, eu estava em uma tensa reunião do Conselho Universitário da UFSC quando chegou a notícia, dada por um colega, de que a cidade de Nova York estava sendo atacada. Vivíamos uma greve que alcançaria mais de três meses. À tarde, em assembleia no hall do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, uma professora deu vivas ao ataque terrorista nos Estados Unidos, reeditando o antiamericanismo tosco que muito nos caracterizou, e que em parte ainda nos compõe. Foi apoiada por parte da claque presente¹. Às vezes nosso discurso é por demais abstrato, como se a realidade, com sua enorme dose de sofrimento, nada contasse.

Tudo isso veio-me à mente porque antes de ontem foi 11 de setembro, mas também porque uma greve (em péssima hora) se avizinha, e pelas ofensas que o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, desferiu contra Michelle Bachelet, duas vezes principal mandatária chilena, atual ocupante do cargo máximo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Ela foi presa e torturada durante a ditadura pinochetista, assim como seu pai, Alberto, Brigadeiro legalista da Força Aérea, que se opôs ao golpe perpetrado e sofreu, até a morte, nas mãos de colegas e ex-alunos. Depois de afirmar que o espaço democrático no Brasil estaria encolhendo, a chilena foi advertida por Bolsonaro de que se não fosse Pinochet, o Chile seria tomado pelo comunismo, com o apoio dela e de seu pai. Observe-se que o Presidente do Brasil não se preocupou em corrigir ou rebater a afirmação da chilena, preferindo desqualifica-la como interlocutora crítica. Para tanto, desrespeitou o sofrimento que ela e tantos outros passaram, além da memória do pai assassinado. João Dória, governador de São Paulo, e Sebastián Piñera, presidente do Chile, ambos insuspeitos de comunismo, criticaram a fala presidencial.

É um péssimo exemplo educativo o que o Presidente da República oferece a brasileiros e brasileiras, ao negar fatos, fazer interpretações enviesadas, não ouvir críticas, ofender oponentes políticos. Agindo desta forma ele rebaixa a palavra como instrumento e expressão, valorizando o ruído e instituindo a dúvida não como recurso reflexivo, mas como recusa de tudo que é racional. Onde há grito, há muito medo de debater. A política recua e com ela a democracia.

O Chile avançou, encontrou uma forma democrática, apesar de tudo. Tem havido alternância de poder e estabilidade democrática. Houve acerto de contas com o passado. E quanto a nós? Bachelet tem razão quando afirma que a democracia por aqui encolhe, já que, como escreveu Bresser-Pereira há poucos dias, “a anormalidade e o mal foram transformados em rotina”².

Não seria mal se o Presidente lesse alguns dos grandes pensadores que ele gostaria de proscrever da vida intelectual – se a meta não for acabar com ela –, como Theodor W. Adorno, nascido também em um 11 de setembro. Falando a estudantes austríacos em 1967, o grande dialético assinalava que “os pré-requisitos para o movimento fascista, apesar do seu colapso, assim como antes, seguem vivos no âmbito social, quando não, e de forma imediata, na esfera política”³.

Na análise de Enzo Traverso4, estamos em tempos de pós-fascismo. É bom não negligenciar o mal.

¹Retomo aqui o episódio que narrei neste Jornal em 2 de agosto de 2016:Universidade (ou no Princípio era o verbo que se fez carne)

² Depois do Pesadelo – Luis Carlos Bresser-Pereira (para a Folha de São Paulo)

³“[…] daß die Voraussetzungen faschistischer Bewegungen trotz des Zusammenbruchs gesellschaftlich, wenn auch nicht unmittelbar politisch, nach wie vor fortbestehen”. ADORNO, Theodor W. Aspekte des neuen Rechtsradikalismus. Berlim: Suhrkamp, 2019, p. 10. (Tradução minha).

4TRAVERSO, Enzo. Las nuevas caras de la derecha. Conversaciones con Régis Meyran. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2018. 157 p. (Tradução do Francês por Horacio Pons).


Imagem de destaque: Enzo Apicella

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