Desabrigos: um mar de segregados no abismo social das inverdades

Ivane Perotti

“Reze pra que a falsidade
Seja sempre superada”
(Dedé da Portela/Beth Carvalho)

A lua mansa espiava o abrigo esvaziado. As minguadas mãos que carregavam socorros haviam desaparecido. Morriam os choros, diminuíam as tosses. As ervas-daninhas, assim como a vida, lentamente tomavam o lugar de origem. Ele permanecia no mesmo espaço, e perdera a conta nos dedos da mão de quantos ainda estariam abrigados sob as pilastras do viaduto. Nem mesmo a chuva visitava-os nos últimos dias. Apenas a tosse, as dores no peito e o medo de não levantar dos cobertores acumulados. Quem ia não voltava. Deixava para trás a herança de uma vida invisível: farrapos. Agora, sobravam panos de deitar.

Andava por ali, encarquilhada em suas próprias dores e crenças, a senhora de muitas rezas. Sem nome, atendia aos pedidos por folhas e bênçãos. Era o único recurso para os que desejavam morrer em paz, mesmo que a paz jamais lhes visitasse. Assim na vida como na morte.

Sentava-se a antiga senhora sobre as pernas magras. Dizia palavras ininteligíveis para a cabeça dos males. Amassava folhas, empunhava galhos e assim como surgia, desaparecia na busca por outros necessitados.

— Valei-me, senhora rezadeira! Valei-me!

Sem forças para procurá-la, ele pedia, repetidamente, pelas mãos da rezadeira. Seria um conforto revê-la naquele momento em que a tosse roubava-lhe os pulmões. Não compreendia o relógio da morte. Que desse fim ao fim. Seria mais simples. Seria mais digno para o encerramento daquela vida tão desprovida de sentidos.

— Valei-me, senhora rezadeira! Valei-me!

A febre alta provocava-lhe lampejos de histórias talvez ouvidas, possivelmente imaginadas, e cenas de improviso ardiam-lhe no corpo doente. Via pessoas bem-vestidas, com sorrisos abertos. Iam e vinham abastadas de valores, de saberes, de vitórias, de chances, de informações, de escolhas e de alegrias. Sentia-se entre eles. Não se via, mas conseguia sentir que estava presente naquela fonte de vida igual para todos. Igual para todos. Igual para todos. Igual para todos. Os lampejos misturavam-se com o suor grosso e fétido que o ensopava e jogava de volta às dores e à tosse. Ao frio e ao desamparo. À fome e ao medo. A muito não comia. Bebera aos poucos toda a água da garrafa imunda. Ao seu redor, as ervas baixas e os excrementos criavam uma barreira de odores. Já passava de uma semana, com certeza. E a rezadeira deixara de aparecer. Fora-se a voz e a senhora das folhas e das palavras que ninguém compreendia. Ficara só.

O barulho de um equipamento pesado chegou-lhe aos ouvidos. O corpo sem forças não expressou qualquer reação. Nem mesmo os olhos cogitaram abrir-se para espiar a intrusão. Morrera?

— Tem um morto aqui! Traz o saco.

Sentiu seu corpo ser levantado com facilidade. Não via os homens, escutava as vozes que discutiam:

— Deveriam ter criado um campo de concentração. Jogar lá os vagabundos daria menos trabalho para a gente.ho

— Não fale assim, fulano. Esse povo só conhece sofrimento.

— Sofrimento? Que sofrimento, meu. Vagabundos, to…toxicados!

— Intoxicados ou não, pense se fosse um parente seu.

— Essa coisa de “se fosse um parente meu” não cola comigo, não! Tudo uns vagabundo que nunca quiseram trabalhar. Tem que acabar com todos, um por um.

— Alguma vez você pensou no quanto o povo vive no desabrigo?

— Qual é! Tem trabalho para todo o mundo.

— Não tem não… mas acho que você não pensa, então, vou explicar o quê?

— Meu, não tem explicação. Essa gente não presta. Tem que consumir.

O último baque foi do saco sendo jogado dentro do caminhão. Muito frio. Muito frio. Não tinha mais forças para respirar.

Em sua mente anuviada pelo pavor e pelo cansaço, outra vez imaginou chamar pela senhora rezadeira:

— Valei-me, senhora rezadeira! Valei-me!

“Eu rezo para que o amor e a bondade. Andem sempre de mãos dadas. Falei ô senhora.”
(Dedé da Portela/Beth Carvalho)

P.S. narrativa baseada em fatos reais e na suposição ficcional do que teria levado o homem invisível desta história a lembrar-se do samba cantado por Beth de Carvalho/ Letra de Dida, o Dedé da Portela (regravação 1998, álbum “Pérolas do Samba).


Imagem de destaque: Priscila Paula

 

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