De qual Educação Física estamos falando? – exclusivo

Aleluia Heringer Lisboa

No dia 22 de setembro, no anúncio da Medida Provisória (MP) que reestrutura e flexibiliza o ensino médio no país, por algumas horas a Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia “saíram do ar”. Logo, a grande mídia saiu em defesa da permanência da Educação Física, o que foi muito bom, entretanto causou-nos estranheza os motivos: promoção da saúde e formação de atletas. Não se discute que o esporte de rendimento, por ser veiculado pela mídia, exerce grande influência no imaginário social e também no ensino escolar, portanto são necessários alguns esclarecimentos.

A vivência do esporte é um direito garantido por lei, logo, um direito de todos. Mas de que esporte estamos falando? A Constituição brasileira de 1988, no seu art. 217, prevê que os recursos públicos sejam prioritariamente destinados à promoção do esporte educacional. Outras leis complementares nos dão pistas de que existem diferentes formas de vivências e práticas esportivas. Especificamente a Lei n. 9.615/98, mais conhecida como “Lei Pelé”, regulariza o esporte em nosso país, caracterizando-o em três manifestações: o esporte educacional, “praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer”; o esporte de rendimento, “praticado segundo normas gerais dessa lei e das regras de práticas desportivas – nacional e internacional –, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País, e estas com as de outras nações”; por último o esporte de participação, “praticado de modo voluntário, compreendendo as modalidades desportivas praticadas com a finalidade de contribuir para a integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e da educação e na preservação do meio ambiente”.

Fica muito evidente a diferença e qual tipo de esporte cabe à escola promover. O esporte de rendimento é que visa à formação de atletas e, por esse motivo, está submetido aos interesses econômicos da indústria esportiva, dos clubes e da mídia. O técnico, em sua condução, tem por princípio a seleção dos melhores, logo, a exclusão de muitos. Enfatiza a vitória, somente a vitória, como fim. Tem como princípios a concorrência e a comparação. Por fim, o técnico, segue regras padronizadas ditadas pelas federações. Nem certo e nem errado. São suas regras, valores e princípios.

O ensino do esporte educacional na escola demanda outra lógica na organização e implementação das aulas. É conduzido por um professor que passou por uma licenciatura, daí, falar-se em professor (autorizado pelo MEC) e não técnico; estudante e não atleta. Trabalha-se na escola com grupos heterogêneos, com espaços escolares (e não oficiais), o que requer, muitas vezes, a necessidade de adaptar as regras e espaços para atender a todos. A escola tem como referência a inclusão, pois todos têm o direito de participar. Privilegia o processo educativo e não o resultado final. A metodologia passa pela vivência lúdica e aspectos educativos, e, por fim, está submetida aos interesses e necessidades dos estudantes e da proposta pedagógica da escola.

É preciso demarcar que esporte é um dos eixos temáticos da Educação Física e não o único. Há um enorme acervo de práticas corporais expressas nas ginásticas, danças, lutas, jogos, brincadeiras, para citar alguns. Esses eixos, juntamente com os esportes, serão sistematizados e receberão um trato formativo e pedagógico. Nada impede que a escola tenha suas equipes no extraturno, entretanto, aula de educação física é outra coisa.

Os estudantes estão na escola não porque seus pais os matricularam numa “escola de esportes”, ou em um clube para se tornarem atletas, ou em uma academia, mas porque, como estudantes, todos têm os mesmos direitos de acesso aos conhecimentos disponibilizados, inclusive aqueles relacionados às práticas corporais. Na escola, não somente jogam, mas aprende-se sobre o jogo. Mudança sutil, mas determinante.

Desde 1996, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN), a Educação Física já não é mais considerada atividade e, sim, área do conhecimento. Ou seja, tem conteúdos e objetivos conceituais, procedimentais e atitudinais.

Quanto à saúde, esse é um conceito alargado. Não se combate a obesidade com duas aulas semanais, dentro do esquema acima descrito. A alimentação saudável ou hipercalórica das crianças e jovens, bem como o estilo de vida de cada um e, principalmente, as condições sociais e de vida de nossas crianças e jovens, não dependem do professor, mas sim, em primeira instância, da família e do Estado. Não é justo colocar na conta do professor ou de uma disciplina aquilo que políticas públicas não têm como pauta ‒ que é a saúde, lazer e qualidade de vida da população.

Por fim, reafirmamos aquilo que Tarcísio Mauro Vago, de forma lúcida aponta como sendo a responsabilidade da educação física escolar: problematização e pela prática da cultura corporal de movimentos produzida pelos seres humanos.

Segundo esse autor, essa cultura não se esgota no já existente, aceito e praticado. Sua aposta é em uma educação física como tempo e lugar de investigação da história dos estudantes e de revelação do conhecimento sobre as práticas corporais da cultura de que são portadores; “de invenção de outras maneiras de fazer os esportes, as danças, a ginástica, os jogos, as lutas, os brinquedos, as brincadeiras; de questionamento dos padrões éticos e estéticos construídos culturalmente para a realização dessas e de outras práticas corporais; de realização do princípio de que os alunos e as alunas podem (e devem) se colocar à disposição de si mesmos quando partilham, fruem, usufruem, criam e recriam as práticas corporais da cultura; de garantia do direito de todos(as) participarem, sem exclusão por nenhum motivo; de respeito à corporeidade singular a cada um, construída em sua história de vida”.

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