De John Donne, Ernest Hemingway e Raul Seixas: os sinos dobram para Marielle Franco, Anderson Gomes, para os estudantes da EJA, para você, para mim

Joaquim Ramos
Ana Maria Reis Macedo*

“A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
(John Donne 1572-1631)

Em seus quinze anos de idade, João apresenta uma aparência de um pouco menos. É um rapaz branco e, recentemente, tingiu o louro dos cabelos de preto. Em sala de aula, esse rapaz desafia a ordem: as regras, os professores, o sistema… Naquele dia, João foi o primeiro a chegar em sua turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), daquela escola fincada no meio de uma vila da periferia, da periferia de Belo Horizonte. Como outros tantos estudantes, ele também foi “convidado” a frequentar a EJA, no noturno. Normalmente, os meninos e meninas recalcitrantes são os primeiros a serem convidados a irem para a EJA.

Ao relatar o ocorrido daquele dia, a professora que iria dar aula para João, destacou que ele chegou com cara de assustado, meia hora após o início do turno. Os amigos da classe de João têm entre 15 e 17 anos – uma turma composta, basicamente, por jovens, com poucos adultos. Quando João chegou, com ar de assustado e sem vontade de entrar para a sala, a professora indagou se ele sabia o porquê do sumiço de seus colegas de turma. Ele foi categórico:

– Ah, fessora, ninguém vai vim não, a polícia está dando batida na rua e tem duas “barca” parada na entrada da vila!

Bastaram essas palavras para a professora compreender que essa “batida” estabelecia estreita ligação com os crimes da semana anterior e que a escola continuaria novamente esvaziada por um bom tempo. Como esse “filme” não é novo, todos os professores reconhecem que os estudantes mais jovens, seriam, novamente, os primeiros a serem “expulsos” por essas vias que nunca entram nas estatísticas referentes à evasão escolar. Dois jovens foram assassinados na Vila e um outro continuava internado em estado grave num hospital da cidade. Geralmente, esses acontecimentos representam razões para que as pessoas se afastem do ambiente escolar, pois naquele espaço impera, de forma corriqueira, outros tantos tipos de violência. Normalmente, essas pessoas sabem como agir em momentos de extrema violência.

Assim, João, de modo tácito, levou a professora para mostrar as duas “barcas”. Eram duas viaturas paradas em uma das ruas paralelas à escola. Do corredor, no segundo piso, a professora avistou os policiais que revistavam as pessoas e, de modo mais detalhado, o corpo e os objetos dos jovens que por ali transitavam. João continuou seu relato:

– Fessora, eles jogou meus caderno no chão e falaram que eu não sou estudante coisa nenhuma. Quiseram saber se tinha droga na minha mochila! Chutaram meu caderno e me chamando de filho da puta, mandaram eu pegar minhas coisas e sumir.

A professora, estarrecida e com demonstração de indignação, entendeu mais uma vez, que a saga de “resgatar” esses estudantes teria de recomeçar, urgente! Recomeçar sempre e de novo! Em casos de assassinatos na Vila, as pessoas tendem, por medo, a abandonar a escola, pois essas mortes representam uma espécie de dominó e o próximo pode ser qualquer um (morador ou não).

Durante uma atividade coletiva dos professores de formação, uma professora, de outra escola, afirmou que, em virtude dos assassinatos ocorridos na Vila (referindo-se às mortes acima), os estudantes de lá também estavam ausentes.  A escola onde ela trabalha localiza-se a alguns quilômetros de onde João estuda. Dito de outra maneira, outros estudantes, de outras localidades estavam vivenciando formas diversas de rechaçamentos e, por isso, de modo premente, deixavam a escola.

Dos rapazes assassinados, um era aluno da escola de João e o outro – um pouco mais velho – era pai de uma criança também da mesma escola. Já o moço hospitalizado, foi aluno da EJA no ano anterior. Esse último, tocava bateria na banda de uma igreja evangélica. Esses conflitos entre os jovens, são conflitos que afetam a escola, os seus sujeitos e como não poderia deixar de ser, a morte deles, dentre outros tantos tipos de violência, afetam o trabalho e balança a estrutura da instituição escolar. Contudo, nós, educadores, temos o dever de contribuir com os nossos jovens e ajudá-los a acionarem suas forças para não desistirem.

 A sociedade precisa compreender que a truculência não resolve os problemas e nem todo jovem morador de vilas e favelas apresenta no currículo antecedentes com o mundo da criminalidade, da bandidagem e das drogas. Ser pobre não representa formas potenciais de seguir por caminhos tortuosos. Tortuosa é a vida dos pobres, dos negros, dos LGBTTs, dos que, de berço, já foram alijados do direito de viver com dignidade, de nós, trabalhadoras e trabalhadores que a cada dia perdemos um direito, dentre tantos outros. Por mais que o João – assustado e trêmulo – pareça criminoso, até que prove o contrário, ele não é Ainda que fosse, a lei ainda garante a qualquer pessoa o direito de ser tratada como cidadã, de ter os seus direitos resguardados, o direito de ir, de vir…

A escola ao reconhecer que, sozinha, não dá conta, busca parcerias com instituições diversas para ajudar a resguardar, minimamente, a vida desses meninos e meninas que chegam para estudar à noite, na EJA. Nós, professores, sabemos que não é tarefa fácil, pois a instituição escolar – descolada da realidade do mundo, como espaço arcaico – não consegue compreender o que se passa fora dela. Por vezes, o convite oferecido pelo crime é aprazível e a escola não encontrou um modo de tornar essa competição menos desigual. Como dito, por vezes, a escola afasta e não agrega. Assim, às custas de muitas vidas, vamos tentando romper com o ciclo de exclusão dessa população mais jovem, periférica e marginalizada socialmente. É redundante citar as ações de exclusão que a própria escola realiza, quando não permite que eles, os jovens, permaneçam na educação regular e, como presente de aniversário de quinze anos, exige que sejam encaminhados para a EJA, sem considerar, com isso, que há nesta oferta “irrecusável”, uma forma de alijamento do processo regular de escolarização e fundamentalmente da vida.

Com exceções, distante estão os tempos em que a Igreja era a referência de uma comunidade em assuntos diversos, principalmente em grandes centros urbanos, inclusive em termos de comunicação. Quase improvável, imaginar que o sino de uma capela pos­sa anunciar a uma população inteira um novo fato da localidade: nascimento, casamento, batizado e morte. Porém, nada mais atual que retomar John Donne, (1572 – 1631) escritor e clérigo anglicano que redigiu, em sua “Meditação 17” o trecho: “And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee” (Nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti). O mesmo trecho foi escolhido por Ernest Hemingway para iniciar uma de suas obras mais importantes: “Por quem os sinos dobram?”, escrito e publicado no começo da década de 1940. Raul Seixas escreve Por quem os sinos dobram?, coassinada com o argentino Oscar Rasmussen insistindo  no encorajamento de nos tornarmos sujeitos coletivos.

A linguagem dos sinos, cheia de mensagens cifradas, leva a pergunta óbvia: por quem os sinos dobram? Ou, em outras palavras, quem morreu? Todos sabemos da inevitabilidade do fim da vida… no entanto, são injustificáveis tantos assassinados: Marielle Franco, Anderson Gomes, os oito do “confronto” na Rocinha, os jovens da Vila e tantos, tantos e tantos outros.

Os sinos tocam. Em tempos sombrios, eles tocam de maneira intermitente por tantos, tantos e tantos outros! Os sinos tocam por essas pessoas assassinadas, por aquelas que ainda serão assassinadas e, nesses mesmos tempos, tocam também por você, por mim, por nós!

*Ana Maria Reis Macedo é professora aposentada pela Prefeitura Municipal de Contagem e professora da Educação de Jovens e Adultos pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

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