Das lições da grande política: contra a corrupção, com espírito republicano

Alexandre F. Vaz

Marcus Taborda

A condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrida na última sexta-feira, foi amplamente noticiada em boa parte do mundo, com diferentes graus de surpresa. Dois dos principais jornais de Turim, região industrializada ao norte da Itália, fizeram um paralelo entre o ocorrido no Brasil e a Operação Mãos Limpas, realizada na Itália nos anos 1990. O La República estabeleceu contrapontos, mostrando claramente o que representou a presidência de Lula para o crescimento do Brasil, não apenas no plano econômico, na conquistas de direitos, realização da justiça social etc. Publicou ainda entrevista com Mino Carta, italiano que, como tem feito regularmente, critica o governo e as práticas do PT, mas denuncia o clamor golpista de personagens e grupos políticos e econômicos brasileiros com o suporte da grande mídia. O La Stampa seguiu a linha de inscrever o episódio naquilo que um articulista chamou de “aposentaria” da esquerda latino-americana, citando os nomes de Maduro, Kirschner, Correa e Morales.

Na avalanche de opiniões, pontos de vista, análises produzidas “a quente” no final da semana passada, não só na Itália, mas em vários outros países, algo parece convergir: o combate a todas as formas de corrupção é condição básica para uma sociedade que pretenda algum tipo de equilíbrio e justiça, democracia e republicanismo. Se Lula, Dilma ou quaisquer outros estiverem envolvidos na apropriação privada daquilo que é público, deverão pagar. Esta é, aliás, uma demanda da sociedade brasileira há muitos anos, anterior aos governos da aliança comandada pelo PT. A herança da ditadura, atualizada na escrachada Nova República, alimentou sentimentos de inquietude, insatisfação e injustiça. Aliás, os dois partidos que hoje polarizam o debate político no Brasil, e que se definiram em determinado momento como alternativas à esquerda do espectro político, juntos governaram por mais de vinte anos sem, contudo, propor iniciativa que qualificassem de fato o debate político, fosse para aqueles que cotidianamente são afetados por ela, fosse para as novas gerações que crescem achando que política é coisa de achacadores.

Não podemos discutir questões técnicas da ação contra Lula que, segundo pelo menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal e parte até mesmo da grande imprensa brasileira, foi abusiva e desnecessária. A justificativa segundo a qual a condução coercitiva seria necessária para garantir a segurança do ex-presidente se mostrou, pelos fatos, absurda. Se é certo o que os procuradores da Lava-Jato disseram, que ninguém pode estar acima da lei, tampouco alguém deve ser levado à situação de constrangimento, tal como aconteceu com Lula, que não se negara a prestar depoimento – que aliás, poderia não ter ocorrido por vontade dele mesmo, uma vez que, se quisesse, se manteria calado, coisa que não fez. Há uma decorrência simbólica da ação do Judiciário, dada pelo apelo da grande mídia, que é a de “mostrar” que o operário cujo êxito como governante é inegável, não seria mais do que uma falácia. “Desmascarado”, fica claro o seu lugar, o de “ladrão”. Se em sua tremenda esperteza política, Lula aproveitou o fato para reivindicar sua condição de líder histórico e com ela a cisão de classes no Brasil, é apenas o reverso da medalha.

Não há dúvidas de que a esquerda brasileira precisa reinventar-se e isso passa por uma autocrítica (que não é autoflagelação) que ela parece pouco disposta a fazer. A mudança na cultura política, aquela que forma para a democracia, acabou sendo deixada de lado porque o Partido dos Trabalhadores entrou no jogo eleitoral com todas as armas e forças, mesmo, ao que parece, as mais espúrias. Isso não invalida o mérito dos avanços e direitos conquistados por três sucessivos governos, tampouco a agenda inovadora que o PT propôs nos anos 1980 e 1990. Nada disso dispensa a devida crítica que deve seguir sendo feita a seus inúmeros equívocos. O gosto de que havia muito mais – e melhor – a ser feito, fica, assim como a necessidade de julgamento e eventual condenação por crimes praticados por seus membros ou em seu nome. Tudo isso, no entanto, não pode justificar a redução da política e da justiça em espetáculo. Excitação que impede o pensamento nunca fez bem para a formação política e para a democracia.

A isso se liga outro golpe antidemocrático, que tem a ver com a onipresença do mercado como “sujeito” da política. A despeito da falta de comando que vemos hoje no Brasil, não podemos esquecer o que tanto os jornais brasileiros, como a Folha de São Paulo, quanto o La Stampa, destacaram: o “mercado” deseja um novo governo e saúda a derrocada da presidente Dilma Roussef. Sim, ainda existe quem acredite na mão invisível do mercado… Não é curioso que uma instituição como a FIESP, que representa grupos empresariais que se beneficiaram significativamente das políticas de isenção patronizadas pelos governos Lula e Dilma, defenda, agora, o impeachment? Não chama a atenção que os grandes meios de comunicação não cansem de publicar que estamos vivendo uma das maiores crises econômicas da história? Talvez os mais jovens não saibam, mas este é um país onde, nos anos 1980, recebíamos o salário em um dia e no seguinte ele não comprava mais as mesmas coisas… Ou seja, além da inabilidade e da falta de comando do governo, ainda observamos um conjunto de abutres que tentam produzir a “tempestade perfeita”, entre viúvas da ditadura travestidos de liberais, gestores incompetentes fantasiados de “modernos”, pastores da obscuridade que não se cansam de explorar a miséria geral.

No episódio da condução coercitiva, faltou ao juiz Moro a habilidade, que também escasseia junto à presidente Dilma, para conduzir algo que é do mais profundo interesse público, o combate à corrupção. Na política, fatos são produzidos a todo instante… Se a instituição jurídica é fundamental para o exercício da cidadania e para a construção de instituições mais sólidas, não é possível que o Judiciário pretenda atuar como poder supremo, como se condenara antes de julgar, mesmo que diga o contrário. Junto disso, a imprensa, que impressiona o leitor com o uso do condicional, tornado, “politicamente”, pretérito simples: Lula teria recebido 30 milhões, Dilma teria pressionado o Supremo, Lula saberia do esquema de corrupção… Sem contar que alguns divulgam informações de depoimentos dados exclusivamente à força tarefa. Mas como isso seria possível? Ou seja, há uma mescla de desgoverno político, crise econômica, sanha autoritária e reacionária, que produzem um efeito bastante deletério na cultura política do país e em sua memória, cumprindo papel desastroso em quaisquer iniciativas de educação política.

Combater essa cultura da corrupção é uma necessidade das mais prementes, e sinceramente esperamos que o juiz Moro não entre para a história apenas como o “herói” da operação Mãos Limpas brasileira, como parte da população e da mídia já o vem tratando, inclusive os jornais italianos citados. Mas como figura equilibrada que foi capaz de conduzir um processo equilibrado de julgamento. Dentro disso, a investigação seletiva e arbitrária é um risco para a própria estabilidade do país, além de não cumprir papel formativo para a cidadania. Se a impunidade é um dos mais graves problemas da afirmação de uma vida pública mais democrática e republicana no país – desde as pequenas propinas, passando pelo uso abusivo do espaço das nossas cidades por alguns, chegando aos rios de dinheiro público desviados – é de enaltecer, sem dúvidas, a tentativa de dar um basta a esse tipo de prática. Mas é preciso fazê-lo com espírito público, sem ecoar interesses eleitoreiros, desejos de vingança ou ressentimento. Especialmente quando os mesmos costumes são definidos como prerrogativa de alguns indivíduos ou grupos, mas negados à maioria da população que é, no limite, a grande vítima da nefasta relação entre o capital privado e interesse público. Ou alguém sustentará que essa relação foi criada, no Brasil, apenas nos últimos anos?

Turim, Berlim, março de 2016.

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