Da vocação, ou do indizível da docência – exclusivo

Luciano Mendes de Faria Filho

Há, no campo da pesquisa em educação e nas discussões sobre a formação de professores, hoje, certo tabu que nos impede de falar da relação entre vocação e docência, ou da docência como uma vocação, apesar dessa relação ser continuamente atualizada pelos professores e pelas professoras da escola básica. Há, segundo diferentes críticos, uma desprofissionalização da docência toda vez que esta é associada à vocação.

Essa assertiva, no entanto, não encontra respaldo no processo histórico de constituição da docência como uma profissão e, muito menos, nos discursos dos professores e professoras que, desde o dia-a-dia da escola ou em suas posições a respeito do próprio trabalho, falavam sobre o tema. Todos sabemos que, ao longo da história, a ideia da vocação foi mobilizada pelos praticantes de modalidades muito distintas de ofícios e, posteriormente, de profissões para justificar o engajamento e o compromisso pessoal nessas ocupações e a importância social, cultural e, mesmo, econômica das mesmas. Também foi assim com o ofício de professor e com a profissão docente.

No entanto, em que pesem as interdições atuais, até muito recentemente não havia, nos discursos dos professores e das professoras, sobretudo da educação primária, uma dicotomia entre as duas coisas. Desde pelo menos o século XIX, quando se intensificaram as discussões e as iniciativas, oficiais ou dos professores e das professoras, visando dotar a docência de certos elementos constitutivos de uma profissão – dedicação de tempo, formação específica, associações e periódicos docentes etc – sempre houve o anúncio de que a adesão à profissão docente, com suas marcantes dificuldades e recompensas, dependeria de uma vocação para tal. Mas, do mesmo modo, sempre se afirmou que para realizá-la adequadamente, seria necessária uma formação específica.

Não se pode esquecer que a mobilização da vocação para, eventualmente, justificar os baixos salários e as difíceis condições de trabalho dos professores e das professoras, assim como a suspeição em relação à vocação como um dos fundamentos da docência, veio de homens que, afastados das salas de aula, passaram a falar em nome daquelas que lá permaneceram: as mulheres.

A crítica e a suspeição sobre a vocação tomarão corpo teórico e ideológico mais formal na produção das chamadas ciências da educação a partir dos anos de 1960 e, sobretudo, nos movimentos sindicais dos professores a partir do final dos anos de 1970. A dicotomia da docência como “vocação ou profissão” ganha um caráter quase de verdade absoluta, com claros impactos nos processos de formação das futuras professoras e professores e na elaboração da identidade dos praticantes da profissão.

A “verdade” da dicotomia, anunciada e continuamente reforçada pelo discurso pedagógico, encontra resistência, no entanto, nos discursos das professoras e, porque não, nos discursos de outras profissões que, tão ou mais profissionalizadas que a docência, continuam a mobilizar a ideia de vocação como um de seus fundamentos.

Não se trata aqui, obviamente, de desconhecer o fundamento religioso que subsiste na ideia de vocação e, muito menos, de desconsiderar o conjunto dos trabalhos que demonstram que a construção das “vocações” pouco tem de transcendente e o muito que guarda com os investimentos e as mobilizações dos  sujeitos.

No entanto, há que se perguntar: se a vocação é tão danosa à profissão, por que excelentes profissionais, notadamente na área de educação, continuam mobilizando a ideia de que, para realizar bem o seu ofício, é preciso ser vocacionado?

Minha suspeita é que a mobilização da idea de vocação não é feita, necessariamente, a partir de sua fonte religiosa, mas é uma das formas de muitos profissionais, dentre eles os professores e as professores, falarem dos muitos indizíveis que tem a nossa profissão.

Como muitas pesquisas já demonstraram, notadamente naquelas profissões em que a dimensão do cuidado é central e na quais os limites do humano são colocados em xeque continuamente, há muita dificuldade do conjunto de seus praticantes e, algumas vezes, de suas próprias organizações profissionais, justificarem a adesão às mesmas.  Como justificar para si, e socialmente, a escolha de uma profissão, como a docência, que apresenta inúmeras dificuldades e, aparentemente, poucas recompensas?

De outro lado, e positivamente, a vocação parece funcionar como um elemento que nomearia um conjunto de sensibilidades e disponibilidades necessárias à docência como profissão de cuidado e que, como sabemos, não podem se reduzir aos conhecimentos e aos valores explícitos cultivados pela profissão. Mas funcionaria também como uma justificativa aceitável lá onde a verdade nos revelaria quase que por inteiro: como justificar a adesão a uma profissão que, em boa medida é impossível e revela continuamente a nossa impotência?

A vocação funcionaria, assim, como um iter-dito sobre os indizíveis e os impossíveis da profissão docente. E estes inter-ditos funcionam continuamente como elementos de elaboração de nossa identidade profissional, mesmo quando são silenciados pelos discursos teóricos, pelas políticas e pelas organizações que enquadram a  profissão, mas que  têm pouco poder para fazer calar os profissionais e as elaborações sobre o que são e o que fazem, ou seja, sobre os seus desejos.

Temo que, ao interditar a discussão sobre a vocação como um dos fundamentos da docência e ao reproduzir dicotomia como aquela da “vocação ou profissão” os teóricos, as políticas e as associações docentes mais estão contribuindo para a desmobilização dos professores e das professoras, do que ajudando na elaboração de uma identidade pessoal e profissional que incorpore e saiba lidar com as coisas indizíveis e impossíveis que teimamos em fazer. E, no caso da docência, societariamente, é imperativo que façamos!

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