Crianças e adultos na quarentena: um convite às escutas possíveis e sensíveis

Marcela C. Dias*

Laysa Mari Akeho**

Aline R. Gomes

Coletivo Geral Infâncias

Na semana passada, anunciamos uma série de matérias como forma de discutir com o leitor sobre as infâncias e a quarentena. Hoje optamos por refletir sobre a escuta no universo da casa, nos sensibilizando com as formas de interação entre adultos e crianças nas últimas semanas.

O período da quarentena escancarou algo que, provavelmente, já sabíamos: todo aprendizado cultural associado à proximidade de uns com os outros; na presença física, trocando olhares, toques, cheiros; enfim, no aguço de nossos sentidos e quando nos ocupamos uns com os outros. Mas e agora, como está a escuta e de que escuta estamos falando na quarentena?

Inicialmente, vale destacar que “a linguagem das crianças é de grotas recuas, anterior à palavra, germinal. Bruta. Em erupção. Sequer ainda se inteirou dos torvelinhos da palavra”, deixou registrado Gandhy Piorski em uma de suas passagens por BH. “Lá na casa da árvore”, choros, silêncios, agitação, dificuldade para dormir são comportamentos que desafiam e linguagens que comunicam. Em geral os adultos fazem uso predominantemente da palavra como linguagem e frequentemente de forma imperativa. Desta forma, dificilmente estão dispostos, ou conseguem, verdadeiramente, compreender as crianças.

Neste sentido e diante de um momento tão atípico, talvez as relações intergeracionais não tenham oportunidade melhor para serem ressignificadas. A quarentena vem revelando pedagogias outras, vinculadas com a vida ao redor, tais como as pedagogias das casas, das comunidades e dos territórios, “onde se desdobram e se repetem no dia a dia os gestos elementares das ‘artes de fazer”. Para o atual contexto, artes de viver e sobreviver, sobre as quais estamos vendo algo de coletividade, cooperação,  interdependência, reciprocidade, respeito mútuo e responsabilidade.

Nestas outras-pedagogias, destacamos a importância de falar e ser ouvido como caminhos fundamentais para a relação entre adultos e crianças. A ideia que aqui defendemos é de uma escuta mútua, com cada um dos participantes em evidência no cenário da casa. Os processos de escuta das crianças é um tema bastante problematizado em pesquisas acadêmicas, mas e os adultos que com ela estão? São escutados por quem? Os adultos estão abertos a tal experiência, na casa e na escola?

Quando a arte é da escuta, entendemos que é momento de fortalecer as relações, ressignificar os vínculos e compreender as necessidades, desejos e angústias uns dos outros. O filósofo Boff nos lembra que a observação atenta é também cuidar, pois cuidar é mais que um ato. Já perceberam que as próprias crianças podem se constituir agentes de cuidado, da casa e da família, como participantes da realidade, que trazem necessidades, mas, acima de tudo, diversificam olhares sobre o mundo? Tentar nos conectar uns com os outros, entender as expressões, frustrações e emoções de cada um nos aproxima enquanto seres humanos.

Nos referimos à escuta sensível, aberta ao que se está vivenciando, aquela que se apoia na empatia, e, por sua vez, ressalta o sensível, acessa o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro. Essa escuta não é forjada pela percepção sonora e difere daquela que vem atropelada e interrompida, como defende Marshall.

A escuta empática é desempoderada, deixa desvelar, nos confirma que o que vivemos está no cerne e é real  e por isso possibilita experimentar que estamos juntos, tentando compreender, não tentando convencer. Para o adulto escutar as crianças dessa forma precisa antes experimentar uma auto-empatia, acessando suas necessidades.  Escutar a criança a protagoniza, a considera como ‘lugar de saber e força’. De maneira recíproca, como adultos, ser escutado pelas crianças nas nossas necessidades as coloca na relação como sujeitos de autonomia e liberdade.

E quando nos referimos à escuta da escola? Neste caso, o assunto imprime mais complexidade, visto que estamos falando de diferentes sujeitos e funções sociais, mas fato é que quando famílias e escolas se escutam é mais provável que redes de apoio se intensifiquem, se adensem e tornem-se mais fortes, tanto em torno das crianças e dos jovens estudantes quanto de seus responsáveis.

Dentre os relatos compartilhados no Coletivo durante a quarentena, trazemos a experiência vivida pela escola Quintal da Leste (Belo Horizonte), orientada pelo protagonismo das crianças, a simplicidade material e o livre brincar.  Sendo uma cooperativa de mães e pais na oferta da Educação Infantil, os encontros entre os universos da casa e da escola estão no cerne da Quintal. Os processos de escuta já existentes antes da pandemia da COVID-19 se mostram parte das soluções frente aos desafios do momento.

Acreditamos que a escuta entre as famílias e as escolas é uma direção que nos parece certeira e potente na quarentena. Em contextos escolares nos quais tal relação é distanciada ou burocratizada, a construção de formas de escuta deixará um legado pós-crise mais do que legítimo, para todos os envolvidos no intuito educativo. Onde a escuta já se fez “arte do fazer” cotidiano, o exercício é a transformação ou a apropriação deste processo frente à crise da COVID-19.

Enfim, escutar cuida da vida, também em quarentena. Há uma oportunidade para qualificar as relações humanas e institucionais, por mais desafios e restrições que nós estejamos imersos. As escutas possíveis e sensíveis são em si nada mais que um exercício vivo e intenso de democracia e cidadania.


* Psicóloga, professora da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, especialista em Psicopedagogia, Coordenação Pedagógica e Educação Infantil. mcamargos@gmail.com

** Mãe, membro associada da escola Quintal da Leste, psicóloga, pedagoga, e mestre em educação. laysa akeho@gmail.com

Imagem de destaque: skalekar1992 / Pixabay

 

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