Covid-19: a atualidade da biopolítica

Edgardo Casto*

A propósito da pandemia da Covid-19 e das medidas adotadas na Itália para combatê-la, Giorgio Agamben retomou alguns dos conceitos e teses de sua série Homo sacer, particularmente, o de vida nua (esta vida desprotegida e, por isso, exposta à morte) e a assertiva segundo a qual o Ocidente é governado nos termos da exceção.

Em 26 de fevereiro, ele qualificava como “frenéticas, irracionais e totalmente sem razão” as medidas adotadas, que “provocaram um verdadeiro e genuíno estado de exceção”. Ademais, “poderia se dizer que, uma vez superado, o terrorismo como causa de procedimentos de exceção, a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para ampliá-los para além de qualquer limite”. Em 17 de março, oferecendo alguns esclarecimentos, sustentava que a sociedade não acredita em nada mais que na vida nua biológica, assumindo a disposição de deixar de lado, para não os perder, a amizade, os afetos, as convicções… Neste sentido, perguntava-se: “Que sociedade é esta que não tem outro valor que não a sobrevivência”?

Com tal procedimento, como antes assinalávamos, Agamben projeta os conceitos de sua série Homo sacer sobre as atuais medidas de isolamento e, como acontece em alguns países, de estado de sítio. Particularmente, conceitos do primeiro volume, cujo subtítulo é O poder soberano e a vida nua, em que leva a cabo uma análise jurídica-filosófica dos campos de concentração e extermínio nazistas, considerados por ele como paradigma da política moderna.

Como era de se esperar, estas intervenções suscitaram reações de indignação, além de alguns mal-entendidos e respostas de outros pensadores, Roberto Esposito e Jean-Luc Nancy entre eles. O primeiro, defende que a análise baseada nos campos não seria aplicável à atual situação que, antes de orientar-se no fortalecimento das instituições estatais, nos conduz ao seu enfraquecimento. Jean-Luc Nancy, por outro lado, assinala que nesta situação as estruturas estatais não parecem ser as protagonistas do que ele denomina uma exceção viral, mas, sim, estar dependentes dela.

Neste contexto e com o objetivo de esclarecer alguns pontos da querela, parece-nos pertinente desconstruir uma linha de argumentação que, feita com frequência exagerada e com insuficiente atenção à leitura de seus escritos, superpõe e até mesmo identifica as posições de Agamben e de Michel Foucault acerca da relação constitutiva da política moderna com a vida biológica, a biopolítica, que hoje aparece em primeiro plano em nível planetário.

A partir do século XVIII, defende Foucault, a gestão da vida biológica da população se converte em tarefa da política, a fim de enquadrá-la e controlá-la administrativamente, avaliá-la segundo determinadas normas de saúde e analisá-la em termos estatísticos. Surge aí não apenas uma biopolítica, mas também uma bio-história, ou seja, a possibilidade de que o ser humano intervenha sobre sua própria espécie. A formação de uma medicina social foi um eixo central desse processo.

É comum que pensemos nossa Modernidade em relação à individualidade, às liberdades pessoais e ao estado de direito. O modelo jurídico gerou aqui uma função paradigmática: direitos individuais, incorporação constitucional da liberdade das pessoas, limitação do poder legítimo do Estado. Tudo isso forma parte da experiência moderna, mas, finalmente, é apenas uma das faces da moeda. Tomando como referência o desenvolvimento da medicina social, as análises foucaultianas exploram sua outra face, de onde emergem, não sem importância, as noções de população, segurança e risco. Surge então uma imagem do Moderno que é muito mais complexa, quando então não se trata de alterar um ou outro termo (indivíduo por população, liberdade por seguridade, direito por risco), mas de compreender que nenhum deles pode ser pensado de maneira independente.

Com sua noção de dispositivos de segurança, Foucault buscou empreender tal tarefa. Nesse contexto, as formas modernas de racionalidade política que, para ele, coincidem com o desenvolvimento do liberalismo e do neoliberalismo – algo cuja explicação exigiria outro texto –, podem resumir-se em uma formulação presente em Nascimento da biopolítica que, sob as atuais circunstâncias, ressoa com uma tonalidade simultaneamente efetiva e sufocante:

“Podemos dizer que, afinal de contas, o lema do liberalismo é “viver perigosamente”. “Viver perigosamente” significa que os indivíduos são postos perpetuamente em situação de perigo, ou antes, são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu futuro como portadores de perigo.” (FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 90. (Tradução de Eduardo Brandão).

Foucault chegou a estas conclusões a partir da contraposição entre o que ele denomina como modelo lepra (mais próximo ao dos campos de concentração) e modelo peste. O primeiro é o da exclusão da cidade e da comunidade, expulsão para além das suas fronteiras. Ele comporta uma desqualificação biológica, jurídica, política e, com frequência, moral. No modelo peste também há confinamento, mas ele se configura de outra forma: não se trata de exclusão, mas de inclusão em um espaço urbano reticulado, com minucioso controle do ambiente de circulação. A passagem de um a outro corresponde, historicamente, ao processo de invenção das tecnologias de poder da política moderna.

Risco e segurança acompanham, pari passu, um ao outro. Exemplos privilegiados são, não resta dúvida, os mais variados seguros com os quais tanto o Estado como as seguradoras privadas procuram enfrentar os riscos previsíveis, ou seja, aqueles cujos custos e benefícios podem ser estatisticamente calculados. A lista pode chegar a ser muito extensa: contra acidentes automobilísticos ou de trabalho, de saúde, de desemprego, de velhice, contra incêndios etc.

Sob certo ponto de vista, as atuais circunstâncias não deixam de enquadrar-se, ao menos conceitualmente, no que Foucault chamava de modelo peste, considerando sua concepção de biopolítica e os dispositivos que buscam arbitrar a relação entre segurança e liberdade. Mas também é correto dizer que estas mesmas circunstâncias colocam em jogo novos desafios e nos mostram a falência e os limites dos mecanismos securitários que até hoje, bem ou mal, funcionaram. O que acontece, por exemplo, quando os custos e benefícios do risco enfrentado, que não são apenas econômicos, se mostram pouco claros e, de qualquer forma, não podem ser antecipadamente calculados?

As avaliações mais imediatas (incerteza, psicose, paranoia, frenesi) são, retomando aqui uma expressão popular, antes parte do problema que da solução.

Não seria demais afirmar que a relação entre Estado e sociedade deverá redefinir-se para cada Estado e para cada sociedade, em particular. Haverá que, inevitavelmente, analisar a quarentena. Sem a pretensão de sermos exaustivos, tampouco de propormos qualquer tipo de lição, parece-nos inevitável uma série de deslocamentos (não substituições de uma coisa pela outra, bem entendido): do protagonismo do povo ao da população, do partido ao Estado (com letras maiúsculas, absolutamente justificáveis), da liberdade para a responsabilidade. Em cada caso, a existência dos primeiros termos requer a presença enfática dos segundos. Toda uma retórica política, que finalmente não é apenas retórica, está a ponto de ser reformulada.


Uma versão modificada deste artigo foi publicada na revista Ñ do jornal Clarín, de Buenos Aires, em 27/03/2020, sob o título de Giorgio Agamben y el nuevo estado de excepción gracias al coronavirus.  (Tradução ao Português de Alexandre Fernandez Vaz).

* Doutor em Filosofia, Pesquisador Principal do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina. É autor, entre outros, dos livros Vocabulário de Foucault, Introdução a Giorgio Agamben – uma arqueologia da potência e Introdução a Foucault, todos publicados pela Editora Autêntica. E-mail: edgardomanuelcastro@gmail.com.

 

Imagem de destaque: GruppoVerita/Fotos Públicas

 

 

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