Corpos que já não podem falar

Alexandre Fernandez Vaz

Eu devia ter uns oito anos de idade quando estivemos em uma usina de açúcar no interior do estado de São Paulo. Um conhecido de meu pai era dono da empresa e suponho me lembrar da cana entrando nos grandes moedores, mecanismo que se assemelhava, não fosse o tamanho, às máquinas de extrair caldo-de-cana. A visita foi instrutiva tanto para que eu visse por dentro mais uma indústria (já conhecia outra, de lacticínios e embutidos), quanto para saber como se chegava ao açúcar refinado. Na caminhada pelos setores apareceu lá pelas tantas um recipiente que parecia uma piscina cheia de algo que lembrava melado, e uma pessoa com uma massa solidificada daquilo, uma quase rapadura, talvez, nas mãos. Durante todo o percurso sentíamos um cheiro forte que emanava do tal líquido e com o qual não pudemos nos acostumar.

Havia muito que não me lembrava da visita até que há poucas semanas li na imprensa nacional que o ex-delegado Cláudio Guerra voltara a tornar-se réu por ação da Justiça Federal em Campos, estado do Rio de Janeiro. Ele é acusado de ocultação e destruição de doze corpos de pessoas que foram sequestradas e levadas para a Casa da Morte, em Petrópolis, centro de tortura e assassinato mantido pelo aparelho repressivo da Ditadura Civil-militar que se iniciou em 1964 no Brasil. Os fatos já haviam sido reconhecidos há anos, em depoimento do criminoso para o livro Memórias de uma guerra suja, de Rogério Medeiros e Marcelo Netto, voltando a aparecer no documentário Pastor Cláudio, de Beth Formaggini. O título da película alude à atual ocupação do ex-agente.

Os crimes ocorreram nos anos 1970 e entre os mortos está o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Sobre Fernando Santa Cruz manifestou-se recentemente o Presidente da República, ao dizer que sabia como o opositor ao regime havia sido morto, mas que seria melhor não dizer por que o filho por certo não gostaria de saber a verdade. O mandatário maior declararia, no entanto, enquanto se deixava ver em uma live cortando o cabelo, que a morte teria sido perpetrada por companheiros do militante. Como costuma acontecer, e atuando como influencer, o titular do Planalto não apresentou qualquer evidência do que afirmava.

A recordação da visita à usina de açúcar teve como impulso o fato de Cláudio Guedes destruir os corpos sob sua guarda em outra empresa com a mesma finalidade, deixando-os queimar em fornos da Usina Cambahiba, no Norte fluminense. Segundo afirmou, não se sentia o cheiro de corpos queimados porque o do vinhoto o acobertava. O mesmo cheiro que eu senti há mais de quatro décadas.

Na lista de sequestrados, torturados e assassinados, cujos corpos foram levados para incineração por Cláudio Guedes, dois nomes me chamaram a atenção, além do de Fernando Santa Cruz. Um deles é o de David Capistrano, cujo filho, com o mesmo nome, foi secretário de saúde da gestão de Telma de Souza (1989-1992) e logo prefeito da cidade de Santos (1993-1996). Foi Capistrano Filho o artífice do pioneiro programa de saúde pública de combate à AIDS e redução de danos para dependentes químicos implantados na Baixada. Assim como o pai, o ex-prefeito também morreu muito cedo, não assassinado pela ditadura contra a qual também ele lutou, mas de outro mal contemporâneo igualmente não vencido, o câncer.

O outro nome da terrível lista que me impactou foi o de Ana Rosa Kucisnki Silva. Junto com o marido ela foi sequestrada em abril de 1974 nas proximidades da Praça da República, na capital paulista. Professora do Departamento de Química da Universidade de São Paulo (USP), acabou sendo demitida da instituição por abandono de emprego. Sim, enquanto era torturada no estado vizinho, quando talvez já estivesse morta, corria um processo administrativo para sua demissão, que com rapidez saiu da Procuradoria e chegou à Congregação, instância administrativa formada por colegas, que confirmou o afastamento.

K. – Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, é obra ficcional cujo personagem central é o pai da professora assassinada, e o enredo se desenrola na procura dele por ela. O momento de verdade do livro é a interminável presença da desinformação ou do simples silêncio, desencontros que são demarcados pelos breves capítulos. A regra é ouvir que Ana Rosa está foragida, ou que foi vista em algum lugar, para onde o pai, então – ele mesmo perseguido na juventude, ainda na Polônia – leva suas esperanças que, claro, malogram. A filha jamais é nomeada pelo pai, sem corpo o nome fica suspenso. Mal sabia ele que ela desaparecera em um forno de uma usina açucareira. Assim como a USP não percebeu que sua professora fora sequestrada, não se sentiu o cheiro de morte nas cercanias da usina de açúcar, superado pelo de vinhoto. A diferença é que neste último caso, de fato, terá sido verdade.

Há poucos anos a USP reintegrou, simbolicamente, a Professora Doutora Ana Rosa Kucinski Silva, anulando sua demissão. Há poucos dias, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou uma homenagem ao ditador chileno Augusto Pinochet, o piloto da tortura e da implantação do experimento neoliberal na América do Sul. Sobre os resultados de tal empreitada podemos ler todos os dias na imprensa.

Quando parece que as coisas melhoraram, damo-nos conta de que nossa reelaboração do passado, de fato, não avança.


Imagem de destaque: Patrick Hendry / Unsplash

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