Como ainda não pensamos na vida?

Tiago Tristão Artero

No ‘perspectivismo ameríndio’, observado por Eduardo Viveiros, via fuga de uma visão eurocêntrica, o corpo é determinado pelas relações estabelecidas, sendo que os sujeitos podem ser as pessoas, os espíritos, os animais, as plantas, as montanhas, a depender do contexto observado. Isto se comprova, uma vez que todos estes elementos se relacionam.

Agindo sobre a matéria, o ser humano, propriamente dito (segundo o pensamento eurocêntrico), a transforma e a adapta segundo seus interesses, alocando sentimentos e subjetividades somente a si mesmo, deslocando qualquer humanidade somente para si.

Nós, da família Hominidae, ao classificarmo-nos como “nós”, estamos deixando de lado o todo, entendendo-nos como “nós” e os “outros” ou as outras coisas. Aforante, por exemplo, casos em que pessoas dão a cachorros ou gatos (etc) sentimentos que são considerados específicos dos homo sapiens, na maioria dos casos subimos ao pico da pirâmide da vida e da matéria (incluindo os minerais) e dispomos do planeta de maneira única aos “nossos” interesses.

Os sistemas sociais e econômicos dominantes (sistematizados e com ampla literatura sobre), em sua maioria, consideram o ser humano (aqui tratado como homo sapiens) como dominantes sobre todo o resto. Mesmo assim, ou seja, mesmo alocando o ser humano como dominante, não o colocam como prioridade, uma vez que, em nome do benefício de poucos, uma maioria populacional humana perece e padece diante da coerção em nome da economia e pelos mecanismos e forças instituídas.

Ciente desta contradição, é necessário levantar outras. O vírus que gerou o alerta de pandemia, por tabela, vem equilibrar esta relação. É verdade que, diante dele, alguns poderão reiterar a importância de colocar o homo sapiens como dono de tudo, mas também é verdade que, “à fórceps”, tenhamos que olhar para ‘o todo’ e entender que somos apenas um componente, dos que vivem na parte seca, num pequeno planeta.

Se o coronavírus veio para equilibrar alguma coisa, ou ainda, se é só mais uma consequência da natureza, numa regra de “ação e reação”, pode ser que, de maneira temporal, este equilíbrio se manifeste em desequilíbrio. Sem grandes esforços, notamos que uma pequena minoria tem acesso a respiradores e leitos em hospitais “cinco estrelas”, enquanto que outros estão em acampamentos hospitalares, aguardando vagas, afogando nos próprios fluidos corporais.

Equivocadamente, nos colocamos como donos do planeta Terra e esta posição pode ser revista com outras perspectivas de enxergar o mundo (notavelmente, ignoradas pelos meios de comunicação, pela academia e no seio das relações sociais – que, contraditoriamente, o termo ‘social’ é destinado somente ao que é do homo sapiens).

Voltando o olhar, exclusivamente (e, equivocadamente, eu sei) para o ser humano, o cenário é desanimador:

Aumento de mais de 20% na porcentagem de serviços funerários (num país, chamado Brasil, que ainda não chegou ao pico da doença e que teve queda nas mortes decorrentes das interações humanas, como as de trânsito – o que faz pensar que estes 20% pode ser muito maior, e pode ser em decorrência da Covid-19);

Perspectivas pessimistas (ou, talvez, realistas) de quarentena de mais de um ano;

Dificuldade de “cair a ficha” de que urge a reorganização das formas de trabalho, dos meios de produção e das relações sociais/naturais;

Colapso da economia e das produções de mantimentos da forma com que as conhecemos.

Por mais desanimador que seja, a longo prazo, o cenário poderá ser ainda pior ou, quem sabe, ensejará a reflexão de que novas visões de mundo são necessárias. Por isso, é hora de reavaliarmos o entendimento de que somos superiores na escala de espécies e de reinos e de percebermos a imprescindibilidade de uma visão sobre nossa imersão no todo, modificando a relação que temos com o todo.

Por hora, a perspectiva ameríndia, o ecossocialismo e tantas outras dimensões diferentes daquelas que o capitalismo nos impõe, via coerção estatal, podem ser pensadas, analisadas e servir de base para que esta quarentena não seja em vão e que não sirva para o agravamento das contradições aqui levantadas. Em síntese, temos que pensar na vida numa perspectiva ampla.


Imagem de Destaque: Sasha Freemind / Unsplash

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