Colonialidade e desobediência docente – exclusivo

Eduardo Junio Santos Moura

Duas imagens importam para nossa discussão neste texto:

“Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. Manifestações do dia 15 de março, Brasília. Fonte: Pragmatismo Político
Confronto entre professores em greve e policiais no Paraná. Foto: Daniel Castellano

Ambas as imagens expressam conteúdos latentes visualmente e outros implícitos politicamente e vice-versa. Não pretendemos realizar uma análise semiótica ou iconográfica das imagens, importa uma análise dos aspectos sócio-históricos expressos e da política educacional contemporânea no contexto latino-americano com foco no caso brasileiro, ao qual as imagens nos remetem.

A primeira imagem mostra a faixa de um professor, que no dia 15 de março de 2015, saiu às ruas de Brasília para protestar. Nessa faixa leem-se as frases: “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. Noticiado em vários canais de comunicação, o fato foi visto com decepção por muitos educadores pelo país. Em defesa de Paulo Freire, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou em sua página do Facebook um trecho do pensamento freireano, em que diz: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Por outro lado, não incautos, sabemos que outros tantos aplaudiram a iniciativa do professor retratado e seu manifesto.

A segunda imagem fixa uma cena do conflito entre professores em greve no estado do Paraná e policiais, no dia 29 de abril do mesmo ano, em Curitiba. Ao mesmo tempo, em cinco outros estados brasileiros, professores se mobilizavam e a perspectiva era de que em outros sete estados estes entrassem em greve.

As pautas de reivindicações pelo país incluíam: pagamento do Piso Salarial Profissional Nacional, planos de carreira, realização de concurso público e melhoria das condições de trabalho e de infraestrutura das instituições públicas de ensino.

Nesse contexto, dois importantes pensadores latino-americanos contemporâneos – o peruano Aníbal Quijano e o argentino Walter Mignolo – nos ajudam a empreender algumas análises na inter-relação das imagens mostradas. Em Quijano (2005) nos interessam as dimensões da colonialidade – ser, poder e saber – na perspectiva descolonizadora do pensamento social latino-americano para compreender porque Paulo Freire incomoda tanto a tantos. Em Mignolo (2008; 2010) nos interessa o conceito de desobediência epistêmica que aqui deslocaremos em defesa da desobediência docente, que só fará sentido se epistêmica.

No que tange o campo educacional, em ambas imagens apresentadas há a negação da educação, seja pela ideologia e pelo ato político na ação de educar, seja pelo menosprezo aos profissionais que produzem a educação, expressos no conservadorismo e autoritarismo, que anseia suplantar a democracia conquistada à custa de anos de vida dedicada a pensar a educação, como fez Paulo Freire.

A negação expressa na primeira imagem pela frase “Basta de Paulo Freire” representa, antes de tudo, a negação do legado do pensamento sócio-educacional, não apenas brasileiro, mas latino-americano, que teve e tem forte influência em várias partes do mundo. Ater-nos à significância de Paulo Freire, reconhecidamente o Patrono da Educação Brasileira, seria redundante. Importa ressaltar o teor de colonialidade impregnado na referida frase. Há, nessa, latente colonialidade do ser e do saber, manifesta na ideia de que, ao dar basta a Paulo Freire, abrem-se espaços a outros modos de pensar que advém da matriz colonial de poder eurocêntrica, que se revestem em modismos e penetram facilmente o campo educacional.

Na essência da performance do professor manifestante da primeira imagem, que inclui os atos de pensar, escrever, sair à rua e portar a faixa, há, a fetichização da colonialidade, um masoquismo neocolonial em que o colonizado se coloca numa situação de abstinência colonial. Nesse sentido, o colonizado mantém sua posição na hierarquia da matriz colonial de poder, a de inferioridade.

Um olhar detido no contexto brasileiro desvela um colonialismo interno, na medida em que a negação do pensamento freireano se dá na regionalização das relações de poder. A perspectiva neocolonial que cega e cerceia, considera inadmissível que um nordestino brasileiro seja capaz de produzir uma epistême que contemple a realidade educacional latino-americana.

Compreendemos que, sobre a relação dos pensamentos marxista e freireano incide a ação de interpretação da realidade com vistas à transformação, bem como a defesa de uma educação desalienante e emancipadora. Nessa dimensão, é possível inferir que transformar realidades é o que temos testemunhado nos últimos anos no contexto latino-americano e esse é um ponto que incomoda aos que pretendem manter o status da relação colonial do ser, do poder e do saber.

Ao rompimento das fronteiras que aprisionam o pensamento latino-americano à visão eurocêntrica, Mignolo (2008; 2010) argumenta em favor da opção descolonial como desobediência epistêmica. Não se trata de deslegitimar as ideias europeias, mas, tal qual fez Freire, pensar a partir da identidade política a co-existência da perspectiva descolonial. Nessa direção, é possível pensar a desobediência docente, que só fará sentido se epistêmica.

A desobediência docente a qual nos referimos aparece na segunda imagem expressa pela performance dos professores e inclui o ato de sair da sala de aula e ocupar os espaços urbanos em defesa, antes de tudo, do pensar a educação como prática de liberdade política.

A colonialidade de/con/forma a docência e quando o professor sai do espaço escolar, desobedecendo às convenções institucionais que o limitam, é recebido nas ruas com repressão, opressão, bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha, tal como vemos na segunda imagem. Os agenciamentos políticos do professor na forma da desobediência docente implica desvinculamento epistêmico que vai ao encontro do pensar na perspectiva descolonial, o que, segundo Mignolo (2008), significa, entre outras coisas, aprender a desaprender.

Ao trazer essas duas imagens como ponto de partida para o debate das questões que inquietam o pensamento sócio-educativo latino-americano, com foco no caso brasileiro contemporâneo, pretendemos perturbar os olhares para atos políticos que velam e revelam posicionamentos que, à primeira vista, podem se caracterizar como retrocessos, mas que devem ser problematizados e trazidos à tona como meio para avanços. É tempo, enfim, de descolonização e desobediência docente!

Para saber mais:

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 49ª reimpressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica. Retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2010.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 287-324, 2008.

OLIVEIRA, Dalila. A. Regulação das políticas educacionais na América Latina e suas consequências para os trabalhadores docentes. Educação & Sociedade, Campinas, vol.26, n. 92, p. 753-775, out. 2005.

QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: CLACSO, 2005.

Eduardo Junio Santos Moura – UFMG/ Unimontes

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