Coceira na mão esquerda é dívida

Pedro Henrique Souza da Silva

Sonhar com rato é roubo, sonhar com cachorro é a polícia, sonhar com baseado é liberdade, sonhar com cobra é traição, deixar peças íntimas ou fotos para trás é te trazer de volta para tranca, o passarinho que entra e voa no barraco é trazendo a liberdade… na rua a mão coçar é dinheiro para ser recebido, na cadeia é o alvará que vai cantar

– Professor, muito tempo que num estudo, ainda era menina quando fui pela última vez na escola, pega leve com nós!

– Pô, sei que ocês dão conta de render… por isso, cobro… só cobro docês aquilo que sei que dão conta, faço o planejamento das aulas e também faço os exercícios pensado nisso.

(Sendo sincero, não tinha planejado aquela aula, nem tinha feito os exercícios, peguei o planejamento na internet… o excesso de tarefas, pouco dinheiro e tempo me impedem de ser o professor que gostaria).

– Poxa, mão coçando, vou pôr no bolso, minha mãe fala que quando coçar mete no bolso que o dinheiro vem

– É, professor, mas depende da mão… porque, tipo, quando coça a mão esquerda é dívida, viu?

– Putz, mais? (Já não me basta o apartamento? Pensei comigo).

(Rimos juntos)

– Poxa, ocês nem tem bolso pra colocar a mão, o dinheiro docês vai ficar todo pra mim!

(Rimos juntos mais uma vez)

– Não, professor, aqui, na cadeia, coceira na mão ou no pé é porque o alvará tá pra cantar!

– Poxa, e quando coça a mão esquerda, então?

– Aí é pedra né, sentença com muitos anos de cadeia, muito tempo sem vê minhas menina…

(Ficamos em silêncio)

– Então, vamos fazer o seguinte, daqui pra frente coceira só na mão direita, dinheiro e liberdade pra gente, coceira na mão esquerda a gente ignora, faz de conta que nem viu!

– Já é, professor, daqui pra frente só melhora…

 

Sobre o autor
Professor de literatura na rede particular de ensino, possui experiência na Educação de Jovens e Adultos (EJA) em contexto de privação de liberdade. É doutorando em Linguística Aplicada pela FALE/UFMG, mestre em Educação e Docência pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), bem como graduado em Letras/Licenciatura em Língua Portuguesa. É, também, iniciado nas tradições do candomblé de Angola na comunidade-terreiro Casa de Cultura Lodé Apará.


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