Ciência, Tangos e Tragédias: um caso sobrenatural

Isabel Cristina de Moura Carvalho

No Rio Grande do Sul, todos conhecem a Sbørnia. Mas para quem, como eu, não é gaúcho, explico: a Sbørnia era um país ligado ao Continente por um istmo que se rompeu após sucessivas explosões nucleares mal sucedidas. Atualmente é uma ilha à deriva, navegando livremente pelos mares do mundo. Era deste país que desembarcava, todos os verões, em Porto Alegre, a dupla formada pelo violinista Kraunus Sang, interpretado por Hique Gomez, e pelo Maestro Plestkaya, interpretado por Nico Nicolaiewsky. O Espetáculo dos músicos da Sbørnia chamava-se Tangos & Tragédias e foi encenado de 1984 a 2014, com lotação esgotada em todas as temporadas.  Em 2014, a dupla fez sua última apresentação, pois o músico Nico Nicolaiewsky sofreu uma leucemia aguda e faleceu em poucos meses. Os músicos, separados por este acidente do destino, nunca mais retornaram da Sbørnia, que segue navegando pelos mares deste e de outros mundos.

Algumas vezes, a ciência imita a arte. No momento, vivemos no compasso “tangos e tragédias”. Impactados por mudanças climáticas e paradigmáticas mal sucedidas, muitos de nós, que dedicamos uma vida à pesquisa, já não vemos no horizonte um porto seguro, e nos perguntamos por quais mares do mundo teremos que vagar. Vejamos a situação do Grupo Interinstitucional de Pesquisa SobreNaturezas. O Grupo fará 10 anos em 2018 e, em meados de 2017, foi expulso da PUCRS, que era um de seus continentes. O Grupo captou recursos sistematicamente em Editais da Capes e do CNPq e, neste momento, conta com auxílio Universal/CNPq e articulou uma rede de universidades no Sul (PUCRS, UFRGS, UFSC) e no Nordeste, (UFRPE, UFRN, UFS). No núcleo PUCRS-UFRGS, formou, neste período, 23 doutores e 24 mestres. Apesar de tudo isso, era ligado à PUCRS apenas por um istmo que se rompeu após várias inovações institucionais mal sucedidas, que resultaram em demissões de difícil explicação. Entre mortos, feridos, extintos e exilados está o Grupo de Pesquisa SobreNaturezas. O Grupo, refugiado, navega pelos mares turbulentos do desmonte da ciência no Brasil.

Felizmente, fomos acolhidos pela UFRGS no meio da tempestade. Contudo, isso não ameniza o tango nem diminui a tragédia. Com a retirada abrupta e sem explicações do compromisso institucional da PUCRS com o Grupo, romperam-se as orientações em andamento e inviabilizou-se o uso dos recursos financeiros ganhos para as suas pesquisas. Mestrandos e doutorandos à deriva, pesquisas em risco, planos interrompidos. Fomos atingidos pela grande onda. Náufragos, perdemos rapidamente boa parte de nossa esperança. Pouco restou de nossa confiança nas instituições. O suprimento de “illusio” (Bourdieu), indispensável para se jogar o jogo da ciência está quase no fim.  Como diria, Zizeck, fomos lançados no “deserto do real”.

Tudo isso enquanto preparávamos a celebração do nosso 10o ano de existência. Como é frequente suceder, é demasiadamente humano não perceber alguns sinais do ambiente e ser surpreendido por mudanças repentinas do tempo e do outro. Era difícil crer que isto pudesse se passar antes que fossemos surpreendidos por este obscuro acontecimento. O SobreNaturezas, que os estudantes denominaram, no WhatsApp, de “o melhor grupo do mundo”, reúne muitos talentos, habilidades e vocações diversificadas, além de uma rede no Brasil e no exterior. Temos recebido cotas extras de energia pela solidariedade dos muitos amigos de ciência e de vida. Estamos resistindo bravamente à dispersão e, mesmo nadando contra a corrente, abatidos e cansados, seguimos buscando transformar a tragédia em tango, o deserto em tempo de meditação. E a illusio? Humm… a illusio perdida, em que se transformará? Ou melhor, em que nos transformará? Afinal, como sublimar o ato abusivo? O excesso? A força bruta? Como recusar a condição de “homo sacer” que formula Agamben acerca de exílios e desterros? Um amigo psicanalista, colombiano, gosta de chamar de “desilusionado” o sujeito que, justamente por perder suas ilusões, se torna mais livre para guiar-se por seus desejos e pelas aberturas do mundo. Um sujeito que, de posse de sua finitude, sabe que não é senhor de si e nem do destino, mas por isso mesmo, segue mais leve pelos caminhos que surgem de seu engajamento na vida.

Mas, seria o mundo “desilusionado” um outro mundo possível? Um mundo após o fim do mundo é possível? Mais do que nunca, temos que contar com a ajuda de nossos mestres do fim do mundo, Kraunus e Plestkaya, para decifrar este enigma. Afinal, talvez, sem nos darmos conta, vagando pelos mares do mundo, tenhamos chegado, finalmente, à Sbørnia.

Porto Alegre, 23/08/2017

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