Cada um no seu quadrado: teatralidades e corporeidades online com as crianças

Laysa Maria Akeho*

Larissa Altemar

Babita Faria

Coletivo Geral Infâncias

Respirar agora é diferente. Por trás de uma máscara, se busca preencher os pulmões, em um modo que não parece tão natural. Em cima desse pano tem olhos que se movimentam em outra velocidade, buscando inspirar tudo que o olhar pode tocar. Há um encontro. A respiração ganha outra velocidade, os braços fazem um movimento interno na direção desse outro. Quando os dois sujeitos se aproximam não é possível se tocarem, os olhos se encontram e uma espécie de magnetismo inverso os mantém repelidos. Existe entre eles a impossibilidade do tato, uma máscara, uma tela e uma pandemia inteira.

Como iniciar um texto sobre as corporeidades e as teatralidades sem apontar a poética do encontro? Como nossos corpos têm integrado essa experiência de isolamento? Perguntas essas  que nos movem para a escrita desse texto.

Reflexões que também passam pelos atravessamentos do nosso corpo, enquanto adultas, para nos direcionamos a corporeidade das crianças enquanto brincam, criam e ressignificam seu cotidiano. A experiência de restrição e potência das corporeidades de crianças e adultos revela o corpo vivido, o corpo como lugar existencial em que medo, ansiedade, incerteza, nutrição, espiritualidade, conexão, desconexão, seja o que for, é. E é nele que podemos nos compreender. A experiência de corporeidade é ação no mundo. Na corporeidade, na nossa experiência perceptiva, nos atualizamos, nos presentificamos neste universo.

Uma noção de corporeidade como totalidade, integralidade. Um corpo que não está na dualidade e na oposição apresentada pela concepção cartesiana. O corpo como um espaço sensível, capaz de produzir e receber significados e irremediavelmente lançado no mundo. Portanto “eu estou no mundo tanto quanto o mundo está em mim”¹. E o que desse mundo em pandemia, distanciamento, agravamento de questões sociais e crises, se presentifica nas crianças?

Cientes de que o corpo é atravessado pelas questões étnico raciais de gênero e classe, não se trata  de compreender o  corpo como categoria única, mas de entender sua inserção em um contexto amplo que cria possibilidades e também limitações. Por isso fazemos um exercício de refletir sobre as corporeidades das crianças nas experiências teatrais por meio (e atravessado) pelo ensino remoto.

O espaço compartilhado nas aulas virtuais ganha um nova forma: o quadrado. Tudo que está fora dele se torna coxia, escondido dos olhos dos espectadores, ou melhor, dos colegas de turma e professora. Por outro lado, tudo que aparece nele é cenário: um espaço para contar e viver uma história.

Mas quando contamos histórias utilizando o quadrado virtual, o que fazemos é teatro? Se não é teatro, é então cinema? Será que é outra coisa? A prática teatral nos leva ao exercício de tentar sempre atingir um estado de presença. Mas durante a pandemia, com as aulas online, a lógica da poética do encontro entrou em crise. Afinal, não podemos nos reunir na sala de aula ou no palco, em um mesmo espaço, ao mesmo tempo, de corpo presente. A verdade é que isso sempre foi fundamental para o teatro. Agora, as maneiras de estar com o outro estão sendo atualizadas, com a emergência de outra forma de encontro no espaço virtual.

Concomitantemente, o momento que vivemos hoje pode ser definido por experiências e experimentos em vários softwares e plataformas online. A partir do uso das tecnologias e dos recursos audiovisuais, essas ferramentas (algumas antes inexploradas) abrem espaço e inspiram novas ideias e propostas estéticas dentro do ensino do teatro.

E como as crianças têm vivido a pandemia com seus corpos durante as aulas dramáticas? Existem muitas ideias e curiosidade, e, por incrível que pareça, muito interesse, concentração e foco. Elas querem explorar, experimentar, ir além, ainda que sentadas na frente do computador ou do celular. Isso acontece mesmo quando algumas delas ficaram em volta de aparelhos eletrônicos o dia todo. A aula de teatro abre possibilidades para experimentações além da pandemia. Na verdade, para além do quarto, da casa e até do planeta. Continua sendo um espaço de transgressão.

Em nossa percepção, nas aulas online de teatro com crianças, este estado de presença que falamos antes pode ser potencializado ou suprimido. O que aqueles alunos vivem e como podem estar enfrentando e processando esse momento de isolamento social atravessa necessariamente as dinâmicas desenvolvidas nas aulas, momento em que a corporeidade é elemento fundamental na criação cênica.

É por isso que o teatro para crianças não deve ser visto apenas como um momento de lazer nesse contexto de isolamento. É também, mas vai mais fundo, ao provocar, e depois dar espaço para todas as reverberações trazidas pelas experiências da corporeidade nas infâncias.

Nesse espaço teatral, a escuta nos conecta com as necessidades e angústias, mas também com os desejos dessas crianças. Que agora experimentam muitos desses processos cognitivos, sociais e afetivos com seus pares, por meio das telas e salas de aula virtuais.

No curta-metragem Nadine Labaki e Khaled Mouzanar da série Homemade  do Netflix, por exemplo, vemos um teatro vivo, do encontro e corporificação. No curta, uma criança interpreta várias personagens, em mais de uma língua. Em certos momentos, está com um guarda chuva, como seu objeto cênico essencial. Ocorrem também movimentos dela no espaço e a relação com objetos naquele espaço. Tudo em uma narrativa contínua e fluida. A tal da presença cênica, encontrada na brincadeira de faz de conta. Esse momento poético, registrado por seu pai, mostra o poder da fantasia e da ficção, para qual o isolamento e as telas não são barreira, e sim potência.

Nas teatralidades experienciadas coletivamente, as crianças também podem conceber narrativas transformando o espaço de casa com seu corpo em movimento, ressignificando os objetos ao redor. As crianças reproduzem, a sua maneira e com suas possibilidades, o encontro físico, o toque e as proximidades possíveis, transvendo o modus operandi do momento global por meio da imaginação compartilhada.

Referências:

¹MACHADO, Marina Marcondes. A FLOR DA VIDA/Sementeira para a fenomenologia da pequena infância. 2007. 195p dissertação (doutorado em Psicologia da educação) Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

*Mãe, membro associada da escola Quintal da Leste, psicóloga, pedagoga, e mestre em educação. E-mail: laysaakeho@gmail.com


Imagem de destaque: Imagens cedidas por Babita Faria e mães da Associação Quintal da Leste, em Belo Horizonte. https://zp-pdl.com/best-payday-loans.php www.zp-pdl.com https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php http://www.otc-certified-store.com/alzheimer-s-and-parkinson-s-medicine-europe.html

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