Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Clara Maria Miranda de Sousa
A situação da pandemia provocada pelo COVID-19, tendo como consequência necessária a medida de isolamento social, demandou às escolas, num primeiro momento, a suspensão das atividades presenciais. Nesse sentido, as redes escolares, privadas e públicas, se depararam com inúmeros desafios sobre a viabilização do processo remoto de escolarização
Um dos principais desafios tem a ver com a aquisição de dispositivos (computador, smartphone, tablets, etc.) e o acesso à internet de qualidade. Isso desvela a chaga nacional, que é a terrível desigualdade social. O Brasil, um dos países considerados democráticos, é também uma das nações mais injustas, onde poucos detêm a maior parte da riqueza e a maioria da população vive em grande pobreza.
Uma vez os estudantes confinados em suas casas, ou supostamente nelas isolados, também escancara outro problema, ainda relativo a desigualdade social, que é a própria qualidade de vida, incluindo aí acesso às condições básicas como alimentação adequada, à energia elétrica, saneamento, etc. Isso sem falar no clima doméstico, por vezes, marcado por violências e falta de estrutura para manter as rotinas escolares, como um espaço adequado para os estudos. Importante ainda sublinhar que muitos pais se sentem incapazes em auxiliar seus filhos, seja por uma questão de limitações de conhecimento e informação (em relação ao conteúdo escolar e a habilidade para lidar com os recursos digitais) ou até por uma questão de condição existencial.
Saindo do foco da estrutura social dos estudantes e suas famílias, os desafios são encontrados também na condição docente para efetivar as atividades remotas. Sem as devidas formações que os qualifiquem para atuar nas atividades remotas, pois são maneiras completamente diferentes do agir pedagógico (uma coisa é a aula presencial, outra bem diferente é o ensino a distância) e mesmo tendo que arcar com seus próprios custos e ferramentas, trabalhando em home office, os docentes, muitas vezes, expressam angústias e estresses, já agravados pela situação de pandemia, que por si é ansiogênica.
Antes os professores já sinalizavam para uma sobrecarga de trabalho, e por esses dias de pandemia, muitos indicam estarem em jornada dupla, com cobranças ilimitadas a todo o momento. Alguns relatam executarem atividades em regime de dedicação exclusiva, tendo que, por exemplo, atender pais que enviam mensagens a todo o momento e gestores que exigem por serem também exigidos, em torno do cumprimento de cronogramas antes pensado para uma escola em regime presencial.
Nos cliques e telas nos quais estão sendo desenvolvidas as aulas remotas, temos alunos, professores e, consequentemente, famílias que acompanham ou estão tentando adentrar uma realidade desconhecida e angustiante, aprendendo a como gravar e editar vídeos, tornando o ambiente doméstico o mais próximo possível do espaço escolar, lidando o universo online e transitando pelas relações virtuais.
Esses problemas parecem ser minimizados quando se trata de alunos oriundos de classes sociais mais abastadas ou quando a escola garante as condições de trabalho para os docentes. Nesses casos, há acesso à internet de qualidade, há uma estrutura doméstica para o estudo, as condições básicas de vida são garantidas, os pais são escolarizados e há disponibilidade de tempo para mediar as atividades remotas.
Contudo, essas aparentes condições favoráveis revelam um problema mais radical que afeta, inclusive, todos os docentes e alunos, independente de seus pertencimentos de classe e de condições de trabalho. Esse problema tem a ver com a própria situação da pandemia e a compreensão do impacto das atividades remotas na vida dos alunos.
Alunos e professores são praticamente contundentes ao afirmarem que as aprendizagens são possíveis, mas que não é a mesma coisa. Isso significa que há uma inevitável diferença na situação que os alunos se encontram, sobretudo no que diz respeito a atividade remota no contexto de pandemia se comparado com as atividades presenciais. Porém, parece haver uma pressão por parte dos gestores escolares, de certas políticas públicas educacionais e mesmo reverberações por parte dos pais ao tentarem combater os “prejuízos” causados por toda essa situação.
Uma das consequências em combater os “prejuízos” é transpor a carga horária e a larga quantidade de conteúdos da condição presencial para as atividades remotas. Então se o aluno tinha quatro horas de aulas por dia e um quantitativo de conteúdos das matérias a ser dado num certo período, tudo isso foi transposto via os ambientes virtuais. Acontece que essas transposições literais são inviáveis, pois uma coisa é participar de quatro horas de aula na interação face a face e outra é ficar ligado numa tela no mesmo período de tempo.
Essa ânsia por suplantar os “prejuízos” causados pela situação de isolamento social é a concepção básica do problema das aulas remotas, e que atravessa o modo como as escolas e famílias, via de regra, têm lidado com as atividades remotas, tendo as melhores ou as mais reduzidas condições.
A ânsia por transpor os “prejuízos” é uma postura, inclusive, negacionista no que se refere a própria situação da pandemia. Há prejuízos sim. Ninguém sairá incólume dessa situação. Achar que tudo pode ser transposto, substituído e mantido é negar que estamos vivendo uma pandemia de um vírus que pode ser letal e que, por enquanto, não tem vacina.
Quando as escolas insistem em manter a ênfase na carga horária e nos conteúdos de maneira literal e quando os pais pressionam o preenchimento dos “prejuízos”, não estão só sendo negacionistas, mas também estão sendo inefetivos do ponto de vista pedagógico, sem falar nos possíveis desdobramentos em termos dos adoecimentos mentais dos alunos.
O problema das atividades remotas, portanto, e que parece atravessar de modo geral todas as escolas e famílias é a concepção mesmo que deve ser a atividade remota e o papel da escola nessa situação de pandemia. As escolas podem, por exemplo, ao invés de negar e querer fazer de conta que não haverá prejuízo, assumir as limitações, focar nos vínculos, abordar mais a experiência formativa de toda essa situação, acolher os alunos em seus afetos e, na medida do possível, trabalhar alguns conteúdos vinculados às suas vivências.
As escolas não podem repetir o discurso necrófilo de um certo sentido da economia, que esta “não pode parar”. Essa ideia de que a vida escolar, tal como havia antes da pandemia, “não pode parar” é antipedagógica, adoecedora e, portanto, negacionista da própria situação da pandemia. Além do mais, é negacionista também em não notar que muitas experiências estão se dando na vida dos alunos e que há uma perda de oportunidade das escolas estarem próximas e ativas numa mediação mais “educuidadora”.
Imagem de destaque: Marcelo Camargo / Agência Brasil