As razões da militarização do ensino II: Período Contemporâneo

Antonio Carlos Will Ludwig

Em época mais próxima aos dias que correm é possível constatar em vários países o fenômeno da militarização do ensino. Um dos mais contíguos refere-se à Coréia do Norte onde persiste uma rigorosa ditadura hereditária acompanhada pelo culto à personalidade do líder dirigente. A iminência de guerra permanente levou os governantes a organizar o quinto maior exército do mundo com mais de um milhão e duzentos mil homens. Ele agrega armas de ponta tais como artefatos nucleares e mísseis balísticos que comumente são utilizados como intimidação a qualquer tipo de ameaça vinda de outros países. A interferência desse aparato alcança o sistema educacional. Nas escolas os alunos usam fardas militares, fazem cursos e estágios de defesa em unidades bélicas, desfilam diariamente para entrar e sair da escola,fazem glorificações aos líderes políticos, exaltam o país e repetem frequentemente slogans patrióticos cercados por paredes  possuidoras de estampas de blindados, armas e tropas que caminham em direção ao combate.

A China que é dotada de um regime político autoritário possui o maior exército do mundo com mais de dois milhões e trezentos mil sodados. É um recurso extremamente valioso para garantir a revolução socialista e os interesses que extrapolam as fronteiras nacionais. Nesta nação a militarização da educação incide na primeira e na última série do ensino médio e no primeiro ano da faculdade. O programa militar costuma ser realizado em espaços das universidades ou mais frequentemente em locais previamente definidos, situados no interior do país. As atividades desenvolvidas incluem passar a noite em claro como sentinela, tomar banho em chuveiros coletivos, cantar músicas revolucionárias, manusear armas e estudar temas relativos à estratégia militar.

Israel que ostenta um regime democrático parlamentarista é um país encravado em um pequeno espaço no oriente médio e é cercado de inimigos por todos os lados. No decorrer do tempo envolveu-se em várias guerras com nações árabes circundantes e sua política de ocupação territorial tem sido capaz de intensificar as ameaças vindas de fora. Para manter-se nesta região ele conta com forças de defesa pouco numerosas, mas possuidoras de elevada competência. O nacionalismo une fortemente civis e militarese a generalizada percepção de insegurança favorece a militarização de toda a sociedade. Assim sendo é bastante comum a presença dos militares nas escolas. Aí se dirigem para dialogar com os estudantes, passar informações a eles e fazer apresentações sobre temas pertinentes. Tal como os soldados os alunos nas escolas participam entusiasticamente das comemorações do Dia da Independência, do Dia do Holocausto e do Dia de Homenagem aos Soldados além de celebrarem o assassinato de árabes. Já se encontra em funcionamento uma escola constituída por militares destinada a ensinar os jovens a enfrentar os rigores da vida castrense e os procedimentos de defesa em caso de ataques. Eles fazem um curso intensivo em acampamentos e lá permanecem por várias semanas durante as quais aprendem as técnicas de defesa pessoal, a atirar e a identificar o inimigo. Desde que foi aberta, há mais de doze anos, continua crescendo e já possui mais de dez mil alunos.

Nos Estados Unidos da América do Norte, considerado como o possuidor da maior e mais expressiva democracia do mundo, o patriotismo estreita bastante os laços entre civis e militares principalmente após o onze de setembro de 2001 que teve o poder de aumentar o medo da população aos ataques terroristas. É um país que também possui interesses em vários locais do planeta. Em decorrência encontra-se dotado das Forças Armadas mais poderosas do mundo. Seu sistema educacional sofre os efeitos desta situação. Um deles refere-se à intensificação do regime de controle nas escolas públicas por meio da vigilância tecnológica e da constante presença de policiais militares em seu interior. Com base numa concepção punitivista estão aparecendo escolas terceirizadas mantidas por organizações que adotam modelos denominados de quase militares e sem desculpa. Também há escolas tipicamente militares, porém não obrigatoriamente ligadas ao Exército, à Marinha ou à Força Aérea. Com um expediente de dezesseis horas os alunos realizam atividades esportivas, praticam atividades físicas e participam de aulas das matérias previstas no currículo. Possuem um código de ética que leva em conta a disciplina, a honra, a integridade, o respeito e a fidelidade. Exigem o cumprimento rigoroso da rotina estabelecida que inclui as horas de acordar, de almoçar, de estudar, de dormir, etc. Cabe citar ainda que a militarização já alcançou o ensino superior. Com efeito, muitas universidades norte americanas estão fazendo pesquisa, produzindo inovações e criando novos conhecimentos para atender exclusivamente a demanda oriunda da área castrense. Algumas universidades tais como Harvard e Colúmbia também estão ofertando seus espaços para o Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva, o qual oferece capacitação militar aos alunos selecionados.

A União Soviética que possui um discutível regime democrático, de modo semelhante aos Estados Unidos e a China é um país que adota uma política de projeção do poder. Para sustentar esta política ela conta com Forças Armadas constituídas de várias centenas de milhares de soldados que passam por treinamentos constantemente aperfeiçoados. Possui também uma indústria de defesa totalmente nacional que produz armamentos sofisticados. No âmbito da sociedade russa reina um vigoroso sentimento patriótico que vem se mantendo desde os primórdios da revolução socialista. Recentemente este sentimento foi capaz de levar o governo de Putin a estabelecer uma diretriz da política educacional que recebeu o nome de educação patriótica. Com base nela, os alunos com idade entre dez e dezesseis anos, devidamente fardados, integram batalhões e entram em forma diariamente para ouvir os instrutores militares sobre as atividades a serem cumpridas as quais envolvem o manuseio de fuzis, a retirada de minas explosivas de um terreno, a operação de caça a terroristas, o emprego de primeiros socorros, a leitura de mapas e uma partida de paintball. De maneira parecida aos casos da Alemanha e Itália os discentes são estimulados a se filiarem ao Yunarmiya, um grupo militar juvenil que já conta com mais de duzentos mil integrantes.

Em nosso país a militarização do ensino público percorreu o século vinte e inicialmente abrangeu os Grupos Escolares e as Escolas Modelo do Estado de S. Paulo.  Manifestou-se logo após a Primeira Guerra Mundial através de atividades ligadas ao escotismo. Em fins da Segunda Guerra Mundial foi passada às escolas a tarefa de forjar a consciência patriótica dos alunos. No decorrer dos vinte anos de ocaso da democracia emergiu a obrigatoriedade do ensino da educação moral e cívica. No século atual surgiram projetos como o Atiradores Mirins, a Escola Cívica Brasileira, as Escolas de Instrução Militar e as Escolas Cívico Militares.

Os casos citados anteriormente demonstram que existe um íntimo liame entre o fenômeno da militarização relativa ao poderio bélico e a militarização do ensino. No entanto o Brasil constitui um exemplo de que a militarização do ensino não foi e nem está sendo induzida pela ocorrência desta militarização, porquanto ela nunca existiu entre nós embora possa ter havido a intenção de concretizá-la. Houve sim um militarismo persistente que também percorreu o século vinte. Na polêmica que atualmente tem se manifestado em torno das escolas Cívico Militares o questionamento a respeito das razões da militarização do ensino público não tem sido recorrente porquanto o debate tem girado majoritariamente em torno da viabilidade financeira de uma política educacional  baseada nelas, da comparação dos pontos obtidos em testes nacionais e da eficácia do processo de aprendizagem. Por sua vez, o Ministério da Educação, contrariando as evidências, nega que esteja ocorrendo militarização do ensino.

Quanto a isso já tivemos a oportunidade de dizer que o principal motivo provocador da mesma diz respeito ao sentimento de superioridade intelectual e moral que se encontra instalado na subjetividade dos militares o qual nos dias que correm, encontra-se fertilizado pelo elevado prestígio conferido pelos paisanos às Forças Armadas e que vem se reproduzindo desde há mais de um século. Observe-se queeste entendimento não nega a existência de outros motivos, porém considerados acidentais e secundários. Ressalte-se também que tal sentimento não é exclusivo de nosso militares haja vista que já foi bastante investigado por estudiosos do assunto particularmente a partir da década de sessenta do século passado através de Morris Janowitz, um dos principais expoentes da sociologia militar. Ele é adequado aos profissionais das armas porquanto sua ausência pode provocar a derrota de uma tropa em situação de combate.

Note-se que este sentimento não prima pela homogeneidade, pois tende a ser mais ou menos intenso em cada um dos integrantes das hostes castrenses. É possível admitir também que ele esteja sendo abalado pelas diversas transformações que já ocorreram econtinuam acontecendo.Ressalte-se que tal sentimento é consequente do processo de socialização e de educação formal a que são submetidos. A constante prática do militarismo no passado também contribuiu para a evolução do sentimento de superioridade ao mesmo tempo em que este atuou como estimulador do militarismo. O problema é que este sentimento não foi forjado tendo em mira um inimigo externo e sim os brasileiros paisanos. Os militares da atualidade que são apoiadores e partidários da militarização do ensino público provavelmente devem possuir um sentimento de superioridade mais proeminente que os demais colegas de farda e no momento estão se sentindo mais à vontade porque atualmente nosso país está sendo governado por um militar da reserva democraticamente eleito que proveu centenas de cargos da administração federal com militares. Diga-se de passagem, que ele recentemente exibiu um dos principais traços do sentimento de superioridade que é o autoritarismo quando afirmou que as escolas cívico militare sdevem ser impostas.

É preciso deixar claro que este entendimento não significa um rebaixamento e nem uma negação das teorias que explicam a intervenção militar na esfera política com fundamento em fatores externos as quais ao contrário consideramos mais esclarecedoras e convincentes. E embora não tenhamos a pretensão de deter a explicação verdadeira, acreditamos que ela deve ficar explícita uma vez que a presença ativa de militares nas escolas públicas bem como o emprego nelas de concepções militares, sem dúvida, trazem implicações e consequências que podem não ser adequadas à formação dos alunos integrantes dos ensinos fundamental e médio de nosso país.


Imagem de destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil 

 

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