As Humanidades fora da Iniciação Científica: sintoma do fracasso nacional

Alexandre Fernandez Vaz

Nos últimos dias assistimos a uma forte reação de parte da comunidade científica à decisão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) de limitar a concessão de bolsas de iniciação científica destinadas em quotas às Universidades a áreas consideradas estratégicas, o que significa a exclusão das Humanidades e também do esforço da pesquisa básica. Depois de alguma pressão, as Humanidades foram incluídas, mas a custo de se mostrarem úteis (o que de antemão sabota a boa pesquisa) aos desígnios do que o órgão considera não apenas prioritário, mas o que deve ser unicamente apoiado.

A discussão sobre prioridades sempre é complexa, já que supõe a perda de apoio, ou ao menos sua diminuição, a determinadas áreas, projetos e ações cujos representantes se sentem, no mais das vezes, frustrados ou mesmo injustiçados, eventualmente com razão. Trata-se, no entanto, de debate legítimo e necessário, que acontece de uma forma ou de outra em vários governos, inclusive nos que pretendem, ou ao menos dizem pretender, situar-se na centro-esquerda ou mesmo na esquerda do espectro político. É por isso que se fala de inversão de prioridades, por exemplo.

A eleição de prioridades não pode, no entanto, ser arbitrária, assim como tampouco eliminar diferenças e mesmo concorrências com o que se julga como mais importante. Ao mesmo tempo, o que é prioritário deve ser decidido de forma democrática e considerando, em simultâneo, as necessidades mais prementes e o projeto de nação a longo prazo. Nada disso foi observado na decisão sobre as bolsas PIBIC que, além do mais, semeia a incerteza porque os processos de seleção de propostas para o ano que vai de agosto próximo a julho de 2021 estão em pleno desenvolvimento. Como deverão lidar com isso as tantas instituições cujos pesquisadores e pesquisadoras submeteram projetos segundo um edital em que uma regra avassaladora como essa não está presente?

Sim, arbitrariedade e pouco apreço à democracia são pontos fortes do atual governo federal, os exemplos são eloquentes em todas as áreas de sua atuação. Portanto, a decisão do CNPq é uma surpresa relativa, uma surpresa que não nos surpreendente, por assim dizer. Isso, é claro, não nos exime do combate.

Não é de hoje que as Humanidades são desprezadas ou secundarizadas, processo que se enfraquece com uma ou outra decisão governamental de anos atrás, quando recursos foram destinados ou amplificados, até com alguma frequência, para pesquisadas da grande área (com edital próprio, por exemplo) e com chamadas específicas, como as que o CNPq e ministérios lançaram para investigações sobre quilombolas e mulheres. As decisões autocráticas do governo atual excluem pesquisadores, pesquisadoras e suas representações em nome não de um projeto pragmático de desenvolvimento tecnológico nacional, mas do ódio e do medo à crítica e da impossibilidade em lidar com qualquer tipo de diferença. O que é visto como incômodo, e que em ambiente democrático pode ser simplesmente antagonismo de ideias e projetos, deve ser, segundo esse não-pensamento, extirpado. Associadas à asfixia de recursos, vêm posições primárias de pessoas que ocupam cargos importantes, como o Ministro de Estado da Educação: faltaria enfermeiros porque o investimento na formação de antropólogos antes foi grande, Sociologia e Filosofia não devem ser apoiadas como disciplinas escolares etc.  Afirmações como essas, sem qualquer base argumentativa ou factual e apresentando um falso dilema (recursos para uma área necessariamente devem subtrair os destinado a outra) vão, no entanto, minando a relação de cada um com as Humanidades, dissolvendo a constatação de sua importância para o país. Desenvolvem na população um sentimento refratário a elas.

A falta de apoio para as pesquisas básicas é sintoma de uma outra situação, aparentada com a anterior. Trata-se aqui, mais especificamente, da renúncia a um projeto de nação autônoma, capaz de gerar conhecimento para o esforço da humanidade em saber de si e de sua posição no mundo, o que não se resume à pura aplicação tecnológica. A posição atual do Brasil é a de reconhecer-se mesmo como um país secundário e dependente na ciência, assim como tem feito em outras áreas, como a de relações internacionais, ela que tem feito o país alvo de chacota internacional. Renunciar a      autonomia é acanhar-se para aquém da ditadura civil-militar que tivemos, aquele período tétrico que buscava, principalmente em sua última fase, o multilateralismo no ambiente bipolar da Guerra Fria.

Por falar em Ministro da Educação e em ditadura, quando ouço o Ministro Weintraub, dou-me conta de que os militares de antanho foram muito mais cuidadosos com a área. O mais importante entre os que foram titulares da pasta naqueles anos é o Coronel Reformado Jarbas Passarinho, uma pessoa informada e com capacidade de pensar, malgrado sua adesão ao regime criminoso, ter implantado o acordo MEC-Usaid e atuado como ministro de Collor de Mello, entre outras proezas     . Com tudo isso, era muito melhor do que o atual ocupante do Ministério. Esse é um dos sérios problemas deste governo, a aguda incapacidade de governar, o que torna tudo mais difícil. A falta de recursos intelectuais, substituídos pelas fantasias paranoicas da conspiração homocomunista que nos ameaça a cada esquina, impede o debate de ideias.

Toda a movimentação em favor de alterar a resolução sobre as bolsas PIBIC é necessária, tanto pelo seu efeito imediato, quanto pelo que ela representa como sintoma do que está por vir. Mas não sejamos muito otimistas. Enquanto procuramos imunidade ao Covid-19, o que o governo nos mostra é imunidade a qualquer debate racional. Tenhamos coragem para seguir. É preciso.

1 Sugiro a leitura do documento de sua participação no Programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1996, assim com de seu livro de memórias, Um híbrido fértil (Expressão e Cultura, 1996).


Imagem de destaque: Agência Brasil

 

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