Apostar na razão, na ciência, na educação

Danielle Torri*
Alexandre Fernandez Vaz

Em tempos de insegurança e incertezas o que devemos fazer é reforçar nosso respeito pela razão, valorizando a educação que recebemos e reafirmando nossa capacidade de reagir aos infortúnios com atitudes organizadas e bem pensadas, de forma que os estragos possam ser minimizados. O que de pior se faz em momentos como este é deixar-se levar pelo obscurantismo.

Quando crianças frequentamos a escola porque é lá que ciências, artes, filosofia, práticas corporais, devem ser transmitidas. O espaço escolar nos educa para que possamos adentrar ao mundo e dele participar de forma politicamente igualitária, socialmente respeitosa e privadamente protegida, como nos ensina Hannah Arendt.

Mas, em momentos em que o medo parece ser o motor da vida, a ciência perde força de maneira muito rápida, e então nos damos conta de como nossa escolarização falhou. Os mitos aos quais a razão se contrapõe retornam com a força do trauma. Um grave sintoma desse quadro é que a irracionalidade e o anti-intelectualismo venham sendo disseminados pelo projeto antidemocrático que elegeu nosso representante maior, movimento que fica cada vez mais agudo, como se viu no estarrecedor discurso à nação na última terça-feira. O presidente e sua forma de pensar (ou de não pensar) representam uma fração importante dos brasileiros.

Faz parte desse processo o recente corte de milhares de bolsas de pesquisa de mestrado e doutorado pelo Ministério da Educação, que não somente retira de muitos, na prática, o direito à formação, como mostra o oportunismo de realizar tal manobra em plena crise que vivemos. Se já não era fácil para a sociedade dar atenção a um corte de bolsas de pós-graduação, muito menos será agora. Fica, de qualquer forma, o gosto amargo de que a mobilização social para resistir a isso não seria mesmo das maiores – a pesquisa e a pós-graduação não são bens vistos como de todos, mas como um problema das elites acadêmicas. Aliás, o que temos feito para mudar esse quadro?

Voltemos à escola, onde não aprendemos suficientemente ciência, muito menos exercitamos a razão como componente da vida a organizar o mundo circundante por meio do pensamento conceitual. Ciência e pesquisa estão sempre muito longe da escola, de seus professores e ainda mais de seus estudantes. Elas vão, quase sempre, de fora para dentro do ambiente escolar, e nós, das universidades, em geral lembramos que ele existe quando dele precisamos para nossas investigações. Pouco ajudamos a levar a ciência para escola de maneira democrática, pouco ajudamos aos professores a se perceberem também como intelectuais, pesquisadores da própria prática, produtores de saber. Antes sim, a escola é apenas lugar de aplicação de um conhecimento externo, produzido de longe, que empobrece o poder dessa instituição de dizer algo sobre si mesma. Isso vale, com frequência, e malgrado as boas exceções – também presentes na pesquisa – para os estágios supervisionados. Ademais, é bom lembrar, os professores da escola são formados por nós, nas instituições de ensino superior.

A conta chega. Desde os exemplos mais simples aos maiores descalabros. Em necessária quarentena, muitas pessoas ainda saem às ruas sem necessidade, porque na opinião (!) delas não haveria problema. Se ousamos discutir, riem e saem como se nada fosse. São pessoas que completaram a educação básica, e que nessa experiência deveriam ter aprendido a levar a sério a razão e a ciência. Há os que consideram que o vírus não existe porque não podem vê-lo – ou o imaginam tão pequeno que não haveria de ser tão ofensivo – mas ao mesmo tempo acreditam em assombração e em profetas televisivos, eles, sim, sábios, e não os cientistas.

Isso sem falar, claro, do nosso presidente, que concluiu o curso de formação de oficiais do Exército Brasileiro na Academia de Agulhas Negras, quem diria?! Recentemente, mais uma vez, chamou a pandemia de gripezinha, contrariando seu próprio ministro da Saúde, que ainda resguardava no interior do governo o valor da argumentação racional e científica. Ao que parece, sabe o tamanho do problema que estamos enfrentando, ainda que, nas últimas horas, tenha tido a infeliz ideia de mencionar medidas contra o vírus que mal não fariam. Dentre as indicações: chá, canja de galinha e oração.

Em meio à enorme crise, muitos estão agora discutindo nas redes sobre os procedimentos a adotar e as medidas que os cientistas nos repassam, parte afirmando-as, parte as negando. A pandemia agudiza a polarização. Uma parcela defende a quarentena, reforça que educar as pessoas é o caminho, que precisamos escutar os argumentos lógicos de biólogos, médicos, as contas dos infectologistas. Por outro lado, ainda vemos grande número de pessoas defendendo curandeiros, minimizando riscos, desdenhando das informações, quando deveríamos confiar na educação e na ciência, checar informações e só compartilhar o que alcança confiabilidade. Na falta do que dizer, melhor calar.

Estamos nos sentindo traídos pela ciência? A última grande epidemia ocorreu nas primeiras décadas do século passado e crescemos acreditando que nosso desenvolvimento, mais avançado que nunca, poderia conter essas situações. Enganamo-nos? Provavelmente. Mas, há outra saída que não apostar na ciência uma vez mais? Tampouco. Que nos sirvam de modelo as medidas de isolamento social para que achatemos a curva de transmissão, os cálculos para que evitemos mortes em massa, as universidades que desenvolvem material de proteção para hospitais, pesquisadores e cientistas a testar novas drogas para o tratamento dos doentes.

Se mesmo esse conhecimento que advém da ciência, quando mais precisamos dela é relativizado nesse momento, o que dizer das Ciências Humanas? Dos nossos dilemas éticos, das nossas discussões morais, de entendermos como a sociedade funciona, de perguntarmos por que desdenhamos da educação a ponto de não respeitar aquilo que aprendemos? Todas essas pesquisas também são fundamentais, mas são tão ou mais atacadas, já que Sociologia, Filosofia, Antropologia, História, Estudos Literários e tantas outras disciplinas são descartadas como conhecimento inútil pelo atual governo que defende que a escola ensine números, letras, sabe-se lá como, e nada mais.

Soma-se ao corte de bolsas da semana passada, a portaria conjunta do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, da última terça-feira, 24 de março, que exclui as Ciências Humanas das prioridades dos projetos de pesquisa do CNPq. O entendimento do governo é de que pesquisas que “ofereçam maiores probabilidades de desenvolvimento econômico e social” do país devem ser priorizadas. Um país precisa de Humanidades, assim como de Genética, Neurociências, desenvolvimento econômico, fomento à cultura popular, balé, futebol, cinema etc. Um país precisa de vida para além da mera sobrevivência, ou nunca entenderá a si mesmo.

É agora o momento da inflexão, de apostarmos na educação, na solidariedade, na democracia das informações. De aprendermos finalmente que educação crítica (um pleonasmo, na verdade), ciência séria (outro), razão que pondere seus próprios passos, progresso humano que não equivalha a progresso econômico são, mais que nunca, nossa saída.  As apostas na educação por meio da ciência e da razão precisam ser redobradas para que o medo não resulte em mais violência, indiferença e ódio. Se não podemos abdicar daquela que nos traiu prometendo progresso infinito e precisamos confiar na escola, a saída ainda é por dentro, por meio da razão, do pensamento organizado e de ainda mais educação (de todas as ciências) para todos.

Fraiburgo e Florianópolis, março de 2020.

 

* Professora da UFPR. Email: danielletorri@yahoo.com.br


Imagem de destaque: Pedro Ribas/ ANPr

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