Amor que mata: relações confluentes parentais

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

O mito de Narciso revela a experiência de se perder no amor por si mesmo. O saber mitológico revela o dilema da individualidade humana e lança o desafio de que as relações, mesmo orientadas pelo amor, devem preservar a relação com o diferente. Mas quando a relação não é consigo mesmo e envolve, por exemplo, o amor entre pais e filhos¹, haveria chances de se perder a noção do diferente?

Propomos então falar um pouco sobre esse amor que mata envolvendo a relação pais e filhos, sobretudo quando essa relação se dá pela anulação das diferenças e quando os pais passam a suprir de maneira desmedida as vontades dos seus filhos.

 Ao mesmo tempo que parece ser contraditório, também não é incomum encontrarmos produções diversas que abordam a temática do amor que mata. A contradição, nesse caso, se apresenta na compreensão de que o amor é o sentimento humano de redenção, libertação, entrega e mesmo de salvação. As artes e a filosofia, por exemplo, são repletas de situações que abordam o amor como o mais sublime dos sentimentos humanos (obras de Nietzsche e de Martin Buber, “O Beijo”, de Gustav Klimt; “Chez le père Lathuille”, de Édouard Manet, etc.).

Tratar do amor que mata não deixa de ser uma novidade e, de igual modo, a literatura, por exemplo, também apresenta uma vasta produção (Dom Casmurro, de Machado de Assis; Ilíada, de Homero Otelo; O mouro de Veneza, de William Shakespeare, etc.). Assim, sem a pretensão, portanto, de uma genuína originalidade na temática, o amor que mata merece ser destacado nas relações parentais muito mais como uma necessidade de se manter acesa tal questão. Afinal, educar os filhos em tempos “líquidos”, numa sociedade do controle e do consumo não parece ser uma tarefa superada, pois essas marcas da contemporaneidade tendem a contribuir, como contingências formativas de subjetividades, às experiências de insegurança,  de inautencidade e mesmo às formas de violência.

Embora tenha uma chamada dramática, abordar a questão do “amor que mata” nas relações parentais não significa, necessariamente, o assassinato e, consequentemente, a morte física. A morte, neste caso, tem um sentido metafórico e quer dizer a “morte da autonomia” do filho e todos os desdobramentos daí decorrentes.

Quando um pai, uma mãe ou aquele que esteja na função de cuidar/educar uma criança confunde necessidades com vontades e as supri de maneira demasiada, ou quando antecipa as ações da criança não permitindo que ela faça a sua parte para satisfazer algo, o amor está mantando a autonomia daquele ser.

Importante frisar que que esse pai, mãe ou cuidador ama seu filho ou filha. Não está em questão julgar se há ou não amor na relação de uma mãe com sua filha ou da tia com a sua sobrinha ao querer dar tudo: todas as atenções, todos os dengos, todos os presentes e de querer satisfazer todas as vontades. O amor não está em questão, mas sim a forma como esse amor é traduzido na relação e vivido pelo pai, mãe ou cuidador com a criança.

Essa forma como o amor é traduzido e vivido pode ter relação na história de vida desse pai, mãe ou cuidador no sentido de não conseguir separar o que é seu do outro. A Gestalterapia vai chamar essa dificuldade, no contato com o outro, de “confluência” (RIBEIRO, 1997), que seria uma incapacidade do sujeito diferenciar o que é seu do que é  do outro, como se o outro fosse uma extensão de si, seu centro único de sentido para vida, uma espécie de imagem narcísica, portanto.

Do ponto de vista do desenvolvimento da criança, tal tipo de relação confluente pode ser desastrosa porque vai justamente comprometer a conquista da autonomia, deixando-a dependente, imatura emocionalmente e comprometendo todo seu processo de socialização. Uma relação confluente é um amor que mata porque não permite que o outro desenvolva de maneira autônoma. A criança que vive uma relação parental confluente é impedida de ser ela mesma porque o seu cuidador não a distingue como sendo diferente. Ao satisfazer todas as vontades e ao suprir todos os anseios, não possibilitando, inclusive, a criança experimentar por ela mesma ações no mundo, o cuidador não se relaciona com o outro, porque confunde, mistura e desenvolve uma confluência, não se relacionando com necessária diferença do outro.

Nos estudos sobre parentalidade, há ênfase na questão dos limites, que é um desafio  dos processos educativos da atualidade. Embora haja uma contundente discussão sobre a dificuldade dos pais e educadores em estabelecerem limites nas relações com os seus filhos e ou educandos, há nuances na qualidade desse tipo de relação ainda abertas. Há, por exemplo, a dificuldade de estabelecer limites porque o adulto não sabe construir a autoridade, porque os pais ou educadores se sentem culpados, proporcionando uma relação permissiva. Também existe a situação da confluência, como vimos, onde pais, mães e ou cuidadores se perdem nos limites de quem é quem, das suas fronteiras existências e terminam por viver a vida dos filhos como se fossem as suas vidas via um saciamento ininterrupto das vontades das crianças, matando, então, a autonomia.


¹ Embora se faça referência às relações entre pais e filhos, entende-se que essas relações envolvem mães, tias, tios, irmãos, avôs, avós,  professores e demais cuidadores.

Ribeiro, Jorge Ponciano. O ciclo do contato: temas básicos na abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 1997.

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