Algo sobre fé em tempos impolíticos

Alexandre Fernandez Vaz

Em nome de um deus supostamente branco e colonizador, que nações cristãs tem adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vem sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na América, na África mãe, no Mundo.

(Milton Nascimento, Em nome do Deus – Missa dos Quilombos).

A história do Ocidente é, de certa forma, a do Cristianismo. Nosso calendário se define pelo nascimento de Jesus Cristo, nossos feriados nacionais são pátrios ou cristãos. Nos marcos do catolicismo, chegamos a ter uma Padroeira do Brasil, cujo dia em sua homenagem foi comemorado na sexta-feira passada. A tradição cristã é mais que uma religião, é uma máquina cultural, se podemos aqui evocar a expressão consagrada por Beatriz Sarlo. Não se trata, portanto, de expressão cultural a ser desprezada. Ao contrário, há que se respeitá-la, antes de tudo, e considerá-la no espectro das distintas posições que se colocam em um país formalmente laico, como é o Brasil, mas, de forma alguma, ateu.

De qualquer forma, como frequentar uma comunidade religiosa não é obrigação no Brasil, melhor mesmo é quando o Estado se exime de qualquer das crenças, até porque já tem muito o que se preocupar com o que é terreno. Recentemente, Angela Merkel, primeira-ministra da Alemanha, filiada ao Partido Democrata-cristão, de corte claramente conservador, recentemente referendou lei aprovada pelo Parlamento de seu país, embora, como religiosa, se posicionasse contra ela. Ou seja, atuou como estadista. Algo semelhante fez Luiz Inácio Lula da Silva, ao negar benesses ao establishment católico, mesmo sendo religioso e tendo tido como um de seus principais assessores o Frei Betto. Que não se esqueça, ademais, a forte presença católica na formação do Partido dos Trabalhadores, e na defesa dos direitos humanos, em que sempre desponta a lembrança do Cardeal Don Paulo Evaristo Arns.

Mas gostaria de abordar a questão da relação entre fé e política por um outro lado, um lado de dentro, talvez. Estudei em escolas católicas durante parte da minha formação escolar. Numa das instituições encontrei padres conservadores e progressistas, todos com muito comprometimento com a formação, o ensino, a ciência. Laboratório de Química de bom nível, Museu de Antropologia (o primeiro de Santa Catarina), excelentes professores, boa biblioteca, práticas esportivas variadas, vivíamos uma atmosfera iluminista. Isso não impedia que houvesse aulas de religião e vários programas de educação litúrgica. O ambiente era democrático e a participação em rituais e aulas de religião era facultativa.

Tratava-se de uma escola confessional e, assim mesmo, não havia proselitismo mais do que o razoável em um ambiente católico. Ou seja, antes de confessional, era uma escola. Numa instituição pública me parece, no entanto, indefensável a presença de aulas de religião, basicamente porque a laicidade deve ser um valor superior na sociedade contemporânea, quando tratamos de vida da polis, de todos e não apenas de uma parte da população. Não se trata de atacar a religião ou de despreza-la, mas de na vida escolar atuar com outros critérios, analíticos, científicos, estéticos. A Escola é um ambiente distinto da Igreja e assim deve ser, ou ambas instituições perdem sua legitimidade.

Isso envolve a relação entre escola e família. Li dia desses que a primeira não seria capaz de educar os filhos de maneira mais adequada do que a segunda. Estou de acordo, afinal ser filho é condição da vida privada, do vínculo familiar, enquanto na escola se trata de educar alunos. Sim, na instituição escolar, assim como acontece na educação infantil, não é o caso de repetir o que se aprendeu em casa. Ali é preciso apresentar o mundo aos que nele chegam novos, como ensina a tradição iluminista, colocando sob tensão reflexiva valores e normas socialmente cristalizados. Não vejo problemas em que se confronte valores domésticos. Não se trata de desrespeitar os pais, responsáveis, familiares, amigos, irmão de fé ou o que quer que seja, mas de mostrar que em uma sociedade complexa valores opostos podem – e eventualmente devem – coexistir.

Volto à minha experiência escolar. No contato com os padres que ajudaram (e muito) em minha formação intelectual, aprendi algo da tradição cristã. O que sempre me interessou nela foi a posição que Jesus Cristo teria tido em relação aos marginais. A impressão que tinha é que os apóstolos, pelo menos alguns deles, apresentavam suspeitas origens, eram gente que falhava muito, tinha medo e fraquezas. Isso sem falar de Maria Madalena, a moça que estava para ser apedrejada e que foi defendida por Jesus, ao lançar um desafio que nenhum dos detratores foi capaz de encarar. Empatia, coragem, impulso em direção ao outro que é reconhecido como parte não abjeta de mim. Não é pouco, é bonito, dá esperança.

Há controvérsias sobre a figura de Jesus Cristo. Recomendo, como leitura das melhores, o excelente Jesus a.C., do mestre Paulo Leminski. Há algo mais ou menos claro, no entanto. Ele foi barbaramente torturado, sofreu até a morte. Também teve lá, dizem, seu momento de fraqueza. Quando observo hoje, estupefato, a louvação de “supostos” torturadores durante a “suposta” ditadura que nos aterrorizou recentemente, vejo em que situação nos encontramos. Pior de tudo é a perversidade dos que em nome de um Deus que é feito de abrigo para qualquer paranoia, não só apoiam, mas gozam com a dor e o pavor dos outros. Não é esse o cristianismo que vale a pena ser chamado como tal.

Ilha de Santa Catarina, outubro de 2018.


Imagem de destaque:  Joseph Chan via Unsplash http://www.otc-certified-store.com/erectile-dysfunction-medicine-usa.html zp-pdl.com https://zp-pdl.com/how-to-get-fast-payday-loan-online.php http://www.otc-certified-store.com/muscle-relaxants-medicine-europe.html

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