O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira, 1947)

Belo Horizonte, 28 de junho de 2019

 

Querido amigo, Sandro!

Neste momento em que o país está à beira de um colapso, escrever uma carta é, para mim, uma forma libertadora de poder falar desses e de outros “demônios”. Começo falando do “mito”. Ele, nosso indigesto presidente – aqui, com letra minúscula – parece perdido e busca, com todas as forças, fazer o país caminhar em passos largos para trás. Em termos de crescimento, o governo está em marcha à ré e parece não estar dando a mínima para o sofrimento da população mais pobre. Pelo contrário, busca arrochar mais a classe trabalhadora e a fome voltou a assolar a população mais vulnerável.

No domingo, 23 de junho, de dentro do carro, estacionado em uma rua de grande movimentação, fiquei tentando adivinhar a idade de uma senhora maltrapilha e triste, em pé, ao lado da porta de saída de um restaurante de “fino gosto”! Talvez tivesse uns 75 anos ou próximo disso. Do estabelecimento, saíam pessoas bem vestidas e de corpos saudáveis e recém-nutridos! A maior parte dos que saíam – de “pança cheia” – nas palavras de minha mãe – sequer notava aquele “pedaço de gente”, com o olhar triste e distante! A velha senhora não estendia a mão, não pedia, nem incomodava os que por ela passavam. Nenhum gesto fazia! Quieta em um canto, contida em sua insignificância, apenas espiava os que não tinham mais fome!  Em meus pensamentos, aquele olhar morno e longe parecia buscar, nos umbrais da memória, outros tempos e espaços… onde, certamente, a farta comida se encontrava nas latas, nas panelas, no fogão e à altura de mãos e  bocas.

Ao observar aquela cena, meu amigo, num átimo de tempo, lembrei-me de “O Bicho”, de Manuel Bandeira. Que cena triste, meu deus! E se fosse a mãe de uma daquelas pessoas que acabavam de levantar de suas mesas fartas? E se fosse a avó do moço elegante que mira a senhora, num breve instante, para, logo em seguida, virar a cara em direção oposta, por não desejar e nem precisa pensar mais “naquilo”? E se fosse um parente do… Não! Paro para refletir – isso é pura bobagem, nem precisa ser parente dos habitantes da casa grande… trata-se de uma velha senhora – enfiada em velhos trastes – com o olhar desbotado pelas tantas “fomes”  d’um mundo caduco, desigual e injusto. O coração corta e a imaginação ganha asas: por que ela não pede? Por que não toca no ombro daquele gordo que traz um palito entre os dentes, metido em seu terno “príncipe de Gales”? Não entendo porque ela não utiliza os gestos ou a palavra para expressar a sua fome, tão visível, tão nua e voraz… por que ela fica inerte, naquele silêncio medonho, se o que deseja é somente um prato de comida? Será que é só isso mesmo? Por que não fala das desigualdades do mundo? Não. Não é apenas um prato de comida. Há uma dívida histórica por detrás do olhar vazio e triste. Somente um prato de comida não aplaca toda a fome do mundo e nem da velha senhora!

Meu caro Sandro, sei que para as perguntas acima, há infinitas possibilidades de resposta e, certamente, a mais pungente vincula-se à dignidade e a altivez dos que carregam a certeza de terem lutado uma vida inteira, em árduos e diversificados trabalhos para nunca precisarem implorar ao outro, de graça, um prato de comida ou um pedaço de pão. Essas elucubrações povoam a minha mente e por mais de uma hora, nada mais acontece: apenas uma senhora em pé, à porta de um restaurante “chique” e um amontoado de gente que passa notá-la ou sem querer enxergá-la.

Penso também em outras questões que assolam o nosso cotidiano. E se a velha faminta fosse a mãezinha de Sérgio Moro – o juiz que condenou injustamente o Presidente Lula? Ao jogar na cadeia o homem que mais se preocupou – e ainda se preocupa – com os pobres nesse país, esse juiz acreditou que poderia encarcerar, junto ao seu condenado, o sonho de milhões de brasileiros, obrigando-os a viverem na pobreza para não haver disputas com os que se assentam à mesa farta e habitam a casa grande. É disso que quero falar…

O mundo inteiro sabe das falcatruas cometidas por parte do judiciário brasileiro. Muito antes do “The Intercept Brasil” divulgar o conluio e a articulação para aprisionar Lula – impedindo-o de governar o país pela terceira vez – as redes sociais carregavam manchetes, vindo de várias partes do planeta, exigindo liberdade ao ex. presidente e imparcialidade nos sucessivos julgamentos. Uma disputa estava em andamento e a defesa de Lula – imobilizada pelos acordos entre a promotoria e o juiz, conforme demonstrado pelo The Intercept – nem à base de milagres conseguiria demover o judiciário de seu intento de condenar o ex. presidente – mesmo sem provas de crimes. Muito mais do que aprisionar um homem ligado a setores progressistas, o propósito político do judiciário estava voltado para eleger alguém do campo contrário ao pensamento da esquerda brasileira. Elegemos Jair Bolsonaro – o mito, da extrema direita. Por detrás de acordos espúrios, no Brasil, há mais de 500 anos, o domínio dos bens de consumo e da riqueza sempre foi de uma única classe de privilegiados. Como sabemos, a elite brasileira é “gulosa” e carrega consigo uma insaciável fome de lucros e poder. Essa elite olha com desprezo para as classes populares. Assim, para saciar, parcialmente, sua fome, não titubeia em debitar as despesas na conta dos trabalhadores e dos mais pobres. De modo tácito, enxuga-se o Estado, acaba com as políticas sociais, dá uma “fraquejada” na área da cultura e da educação e manda “às favas” pessoas que, como a pobre senhora da porta daquele restaurante, necessita de ajuda para sobreviver. Para muitos que hoje ocupam o poder, “que se dane a fome alheia”. Contudo, não podemos esquecer de que do outro lado, há a força da resistência, pois como alerta a canção dos Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte…”.

Em muitas partes do mundo, há uma junção de forças contra o conservadorismo que se espraia por inúmeras partes do planeta. No dia 21 de junho de 2019, o Jornal Le Monde publicou uma matéria sobre a mobilização na França de associações, intelectuais e artistas contra o atual governo brasileiro. “Paris, capital anti-Bolsonaro” é a manchete do texto assinado pelo jornalista Nicolas Bourcier. Para além do slogam “Lula-Livre”, essas forças de resistência estão atentas a outras pautas de nossas lutas, como cita o mesmo jornal:

A condenação e prisão de Lula, o assassinato da vereadora Marielle Franco, o incêndio do Museu Nacional do Rio e a ascensão de Jair Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto, em 2018, intensificaram os movimentos e os debates na França sobre o futuro da democracia brasileira. Desde então, ressalta o diário, ciclos de debates são realizados na Casa da América Latina e no Instituto de Altos Estudos da América Latina em Paris. Tribunas foram publicadas pelos jornais Le Monde, Libération e L’Humanité. Um manifesto contra Bolsonaro chegou a ser assinado por personalidades políticas de vários partidos, “com exceção da Reunião Nacional”, legenda da extrema direita, ressalta a matéria. (Extraído de: http://br.rfi.fr/brasil/20190621-paris-capital-anti-bolsonaro-publica-jornal-le-monde).

Assim, hoje, na política do país (incluindo a parte política do judiciário), não podemos falar de forças hegemônicas. O que há, são forças antagônicas que, de um lado, afirmam-se, iracundamente, como produtores e promotores de um conservadorismo sem precedentes na história brasileira e busca empurrar a nação para o abismo, colocando a lei do mercado acima das pessoas (isso quando não coloca os estadunidenses acima de tudo e de todos); e de outro lado, estão as pessoas – com ou sem partidos – que desde 2016, com o impeachment da Presidenta Dilma, ocupam as ruas e lutam para preservar conquistas históricas e fazer avançar – ainda que à fórceps – os direitos sociais e humanos.

Ao considerar o retrocesso de nossa política e o empenho de “nossos” políticos em tornar o Brasil – que já foi uma das maiores economias do mundo – um país de miseráveis, o que irá se suceder com o nosso povo? Mesmo sucateada, a educação será capaz de politizar a nossa gente? O que cabe a cada um de nós? Vamos continuar pagando um prato de comida para as “velhinhas” que, em silêncio, “espiam” os que comem? O que fazer nesse estado desmantelado e sem rumo?

Por fim, meu querido amigo, penso que um texto com tantas indagações, não deixaria de fora uma última pergunta: Afinal, cadê Queiroz? Você sabe por onde anda esse amigo da família de nosso presidente?

Parece que ninguém sabe ou quer saber!

Forte e saudoso abraço!
De seu amigo, Joaquim


Imagem de destaque: Cristian Newman / Unsplash

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