A reunião ministerial de Bolsonaro e o roubo da galinha de Rui Barbosa: a língua é a mesma, a retórica NÃO

Joaquim Ramos

O Português é uma das línguas com o maior número de falantes do mundo. Miguel de Cervantes – o clássico autor espanhol – considerava-o um idioma doce e agradável e essa prosopopeia, obviamente, vinda de um dos maiores escritores de todos os tempos, dignifica e ascende nossa língua ao topo dos vernáculos mais respeitados do planeta. Contudo, nem todas as pessoas pensam de igual maneira – mesmo algumas que deveriam ter o dever de ajudar a preservar, honrar e respeitar a língua-mãe. Ao contrário, há gente      de espírito malfazejo e desarrazoado – como o próprio presidente brasileiro e muitos outros integrantes da sua equipe, por exemplo – que “tá poco se lixando pra isso daí, talkey?”.

Com todo o respeito aos que não apresentam competência linguística e gramatical em relação ao nosso idioma por terem, historicamente, sidos alijados do direito à educação. É por meio da educação – guia de acesso à compreensão e utilização da língua enquanto recurso comunicacional – que também nos politizamos para não “escorregar”, como ocorre, de modo corriqueiro, com o atual presidente de nossa nação. Essa mesma educação, vive hoje – como num arroubo de retórica sem precedentes de nossa história – tempos de desprezo e rechaço, desses mesmos políticos que aí estão menosprezando também todas as demais formas de cultura. Alguns desses malfadados e tacanhos sujeitos atacam e desqualificam a educação e, como nunca antes visto na história desse país, colaboram para que ela esteja inserida em dias de inglória, desrespeito e perniciosidade, como tivemos a oportunidade de presenciar na reunião ministerial, do dia 22 de abril de 2020.

Este paradoxo, entre a admiração de uns e o menosprezo de outros pela língua portuguesa, nos faz retomar dois casos diferentes: o primeiro, refere-se ao polímata jurista baiano Rui Barbosa, envolvido em processo de comunicação com um ladrão de galinhas e o segundo caso, relaciona-se, exatamente, a essa recente reunião ministerial, convocada pelo presidente do país e que serviu para tomar de assalto – aqui, de modo metafórico – a língua portuguesa, além de atacar a moral de muitos brasileiros, desrespeitar a população de maneira generalizada e dar clara demonstração do quanto eles são contraditórios: pois, quando é do interesse, eles falam em respeito à família e às tradições; mas quando não é, atacam as tradições e as famílias, com palavras de “muitíssimo baixo calão”, de modo vil e covarde. Em suma, temos aí, duas leituras – a de Rui Barbosa e a reunião dos ministros – que, no mínimo, nos levam a refletir sobre o que podemos fazer com a língua e com a linguagem.

Vamos aos dois episódios:

Passada de geração em geração, nos chega um caso de roubo de galinhas envolvendo o grande filólogo e advogado Rui Barbosa. A história se passa da seguinte maneira: altas horas da noite, acometido por uma “balbúrdia” em seu quintal, o grande estadista, vestido em seu pijama de linhagem nobre, sem muito estardalhaço, dirige-se à varanda de sua residência e, de modo peremptório e seguro, fala para um homem que havia pulado o muro de sua casa, invadido a sua privacidade o seu quintal e segurava, debaixo do braço, a barulhenta galinha:

Não o interpelo pelos bicos de bípedes palmípedes, nem pelo valor intrínseco dos retrocitados galináceos, mas por ousares transpor os umbrais de minha residência. Se foi por mera ignorância, perdôo-te, mas se foi para abusar da minha alma prosopopéia, juro pelos tacões metabólicos dos meus calçados que dar-te-ei tamanha bordoada no alto da tua sinagoga que transformarei sua massa encefálica em cinzas cadavéricas.

O ladrão, todo sem graça, perguntou:
— Mas como é, seu Rui, eu posso levar o frango ou não?

 Essa história de Rui Barbosa, por ser atemporal, deveria ter começado com “Era uma vez, um homem que invadiu a casa de Rui Barbosa para roubar-lhe as galinhas…”, mas não foi assim que iniciei esse “causo” e, para justificar o lapso da minha falta de destreza com o jeito de contar, vou iniciar a segunda história do jeito que deveria ter iniciado a primeira.

Era uma vez… em uma terra devastada muito mais pela ignorância dos homens do que pela propagação de um vírus, milhares de pessoas estavam morrendo. O motivo: o simples fato de terem contato físico umas com as outras. Como não havia vacina para curar os infectados, os maiores cientistas do planeta ensinavam que a chave para se manter vivo era apenas seguir algumas recomendações, como lavar as mãos, utilizar uma substância em forma de gel, fazer uso de máscaras e, principalmente, evitar contatos sociais. Assim, eles advertiam: “só em casos de extrema necessidade, deve-se encontrar com outras pessoas, ainda assim, todos devem fazer o uso de máscaras”. Mesmo com essas advertências das autoridades científicas, as mortes não cessavam, porque nem todos obedeciam às regras do isolamento social, nem as demais regras de segurança. Por isso, os médicos e os técnicos de saúde se desdobravam dia e noite, em turnos ininterruptos de trabalho, para minimizar a triste situação.

Nesta terra, havia um homem que se achava rei, mas que não conseguia entender o que estava acontecendo. Ele dizia que aquilo era um resfriadozinho… uma gripezinha e que as pessoas deveriam seguir suas vidas sem se preocuparem com a tal doença. Sua voz ressoava em todos os cantos, pois se tratava de um pseudo rei – o chefe de todos os outros homens. Excetuando uns poucos lugares do planeta, a maior parte dos reinos que tiveram o seu povo acometido por esse mal, cuidava, com determinação e zelo, de seus súditos. Menos esse reizinho que se achava tão bom quanto os melhores médicos do planeta. Com sua autoridade, ele se sentia capaz de prescrever medicamentos para os doentes – e veja a prepotência: ele nem era médico. Deste modo, por entenderem que aquele senhor supremo estava brincando com as vidas humanas ao seu redor, milhares de pessoas passaram a descumprir suas ordens, pois, só então entenderam o erro cometido ao desdenharem de um homem declaradamente débil e transformá-lo em rei. Agora, era caso de vida ou morte e todos precisavam cuidar uns dos outros. Assim, muita gente começou a compreender que esse rei não conseguia ler a realidade. E assim, por não conseguir ler o óbvio, ele também não sabia interpretar e sem interpretação, ele executava tudo ao contrário.

Sei bem que alguém que lê esse texto pode perguntar: Joaquim, essa história é cópia d“A roupa nova do imperador”? Eu responderei: “né não! Apesar de parecida, as pessoas estão morrendo de verdade!”.

Assim – continuando a história da vida real – um dia, esse inábil rei convocou os seus subordinados diretos para uma grande reunião. Todos, sem exceção, reunidos no mesmo ambiente, juntaram-se a ele e, para demonstrarem o quanto eram fieis, assim como o rei, todos os demais estavam sem máscaras, descumprindo, desse modo, a ordem dos especialistas em saúde humana. De novo, sei que a mesma pessoa que achou que a história era sobre “A roupa nova do imperador” irá pensar: “então, todos morreram.” Não. Eles não morreram.

Nenhum daqueles homens (havia apenas uma mulher) morreu, mas foram acometidos por desvarios múltiplos e começaram a falar palavrões. Eram tantos nomes de baixo calão que parecia uma competição de maus tratos à língua. O desrespeito era tanto que não dá nem para acreditar. Muitos daqueles senhores, visivelmente descontrolados, dirigiam impropérios e descalabros aos demais cidadãos do reino. Um dos subordinados do rei afirmava, de modo oportunista, que era preciso aproveitar o momento que as pessoas estavam morrendo para realizar algumas ações que, em tempos normais      não seriam, jamais, permitidas. A única mulher – com o “poder” de sua autoridade – ameaçou encarcerar um grupo de pessoas. O sujeito que portava a chave do cofre em seu bolso, utilizando de baixa retórica, falou em vender um dos bens mais valiosos daquela população, já tão empobrecida. Outro dizia que era preciso exterminar os homens da Lei – repare que esse, assim como Dom Quixote, peleia contra moinhos de vento. Enfim… o que se ouviu dessas pessoas foram palavras proibidas para se escrever em uma história como essa. Sou incapaz de proferi-las neste texto. Eram falas carregadas de conotação sexual e xingamentos chulos, xingavam até as mães das pessoas ausentes. Por isso, por serem palavras inapropriadas para parte do povo daquele reino, melhor ocultá-las.

Por enquanto, a história não terminou. Ela está apenas suspensa. Quanto ao reino, ele continua numa “balbúrdia sem fim” e, em meio a tantas fake news, há pessoas do alto escalão e muita gente da plebe acreditando ou fingindo acreditar nas belas e suntuosas roupas novas do imperador, digo, daquele rei desalmado. Na outra ponta, lutando para sair deste estado de coisas, um grande e ascendente grupo – pessoas que não se embruteceram neste reinado – acredita na destituição do rei e na queda de seus seguidores.

Quanto ao magnânimo Rui Barbosa, de seu túmulo nem se mexe por conta de tais impropérios e falta de bom senso. Se seu Rui estivesse vivo, com sua sapiência, desconsideraria os palavrões, proferidos pelo alto escalão do governo brasileiro e, com toda certeza, entenderia, por analogia que, ao fim e ao cabo, esses sujeitos – muito mal intencionados em relação aos rumos da nossa nação – também cumprem aquele papel de ignorância, protagonizado pelo ladrão de suas galinhas. Milhares de outros brasileiros, assim como seu Rui, sabem que esses “caras” que aí estão, não são dignos dos cargos que ocupam, muito menos estão preparados para serem signatários da mesma língua falada, por mais de duzentos milhões de pessoas, dentre as quais gente da grandeza de Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Luis de Camões. Sendo assim, “deixem que digam, que pensem, que falem”!


Imagem de destaque: O Rei Nu, grafite de Edward von Lõngus. Em Tartu, Estonia. Foto: Ivo Kruusamägi.

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