A quem prestar continência?

Wojciech Andrzej Kulesza

Contrapondo-se aos que procuram estabelecer um paralelismo entre a revolta do Forte de Copacabana e a Semana de Arte Moderna, vinculando assim o modernismo com o tenentismo de 1922, Pedro Nava é taxativo:

“Seria aliás de estranhar um movimento comum civil e militar no Brasil, devido ao lamentável erro que assistimos de vermos os dois grupos educados separadamente desde a importantíssima fase dos estudos até há pouco ditos secundários que vêm impedindo a convivência dos civis com os futuros militares praticamente segregados de nossa convivência desde os seus tempos de noviciado nos colégios militares”.

Nessa afirmação perspicaz, presente em suas memórias escritas na década de 1970 em plena ditadura militar, Nava exemplifica como a educação é capaz de estruturar uma relação social tão complexa como a que se estabelece entre civis e militares.

Desde os tempos coloniais se organizaram no Brasil escolas militares, inicialmente destinadas à construção de fortificações e ao manejo da artilharia, culminando com o estabelecimento no Rio de Janeiro da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho nos idos de 1790. O desenvolvimento dessa academia deu origem ao ensino superior de engenharia no país, inicialmente exclusivamente militar, tanto é que até hoje, se denominam alguns engenheiros de civis, reminiscência da antiga distinção. Essa academia destinava-se à formação de um quadro de oficiais militares profissionais, contrastando vivamente com aqueles indicados pelo governo, de forma semelhante à concessão de títulos nobiliárquicos no Império. Essa tradição aristocrática provinha da Europa medieval, quando os filhos dos nobres eram incorporados como cadetes nas tropas, tradição que ainda hoje persiste nas alfaias, galões e outros ornatos dos uniformes de gala dos oficiais militares, notadamente os pertencentes à Marinha. Pouco a pouco, impulsionada pela guerra contra o Paraguai, a carreira militar passou a ser regulada por mérito que, em tempos de paz, seria determinado pelos resultados que os militares obtêm nas escolas de formação.

Hoje não é possível qualquer progressão na carreira sem que o militar tenha concluído determinados estudos, desde a escola básica até a escola de estado maior, ou seja, de soldado a general. Assim, por exemplo, o aluno que obtiver a melhor nota no 6º ano do ensino fundamental de uma escola militar, passa a cursar o 7º ano já como cabo, posição que será alcançada pelos seus colegas somente em função de seus desempenhos nos anos seguintes. Como lembra Nava, a formação nas escolas militares é semelhante ao noviciado dos seminários religiosos modelados pela RatioStudiorum dos jesuítas, cujo regime disciplinar adaptou-se perfeitamente às exigências impostas para garantir a preservação da autoridade e da hierarquia características da corporação militar. Deste modo, vigora nas escolas militares uma típica pedagogia tradicionalbaseada num sistema rígido de recompensas e punições, sistema bem adequado para preparar o estudante para a vida na caserna.

Como a recompensa final é a possibilidade de uma rápida progressão na carreira, para o aluno da escola militar (ou aluna, porque hoje também as jovens se alistam nas forças armadas), vale fazer tudo que favoreça esse objetivo, inclusive burlar o sistema, comportamento frequente de estudantes submetidosà pedagogia autoritária do magister dixit. A “cola” é o recurso mais utilizado nessas ocasiões e, quando bem-sucedida, tem vida longa no histórico escolar do futuro oficial. A exibição nas últimas eleições, durante entrevista na TV, de uma “cola” grafada na mão de um candidato, ex-capitão do Exército, supostamente para o auxiliar nas respostas, demonstra a contumáciadessa prática escolar. Muito mais do que nos conteúdos trabalhados, a diferença entre as escolas civis e militares do ensino básico reside em seu regime disciplinar. Enquanto as primeiras estão preocupadas com a formação do jovem para a vida em sociedade, as outras objetivam preparar o jovem para servir à corporação militar.

No momento em que cresce significativamente o número de candidatos com formação militar à representação popularpara os mais diversos cargos eletivos, sob a decrépitajustificativa de que o exército encarna o “povo fardado”, é oportuno nos perguntarmos sobre o significado de sua formação, tanto mais arraigada quanto mais alta sua posição na hierarquia, para seu posicionamento político. Supondo que os militares estão saindo dos quartéis insatisfeitos, como cidadãos, com a sociedade como um todo e não com a corporação, é preciso se perguntar até que ponto seu projeto de sociedadeé calcado na corporação para a qual foram preparados, com seus valores, suas aspirações e suas regras, in extremis, se pretendem reduzir a nação a um imenso quartel. Como se sabe, esse tipo de nacionalismo, pela necessidade que tem de justificaro emprego original do militar em fazer a guerra, cria arbitrariamente inimigos internos e externos, pretensamente responsáveis pelos males do país. Esse estado de coisas, mesmo que não tenha sido a intenção de seus mentores, conduziria inexoravelmente o Brasil a um regime historicamente chamado fascismo, execrado por toda civilização ocidental. Será isso que desejam os militares brasileiros?


Imagem de destaque: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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