A polifonia das fontes na construção da História Social dos negros no Brasil e o papel político do educador

Francis Albert Cotta*

Em tempos recentes, a temática das relações étnico raciais tem sido incorporada no currículo das escolas com objetivo de levar conhecimentos sobre aspectos da ancestralidade que informam as práticas culturais da população negra brasileira. Embora a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tenha criado a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nos diversos níveis de ensino, muitos perguntam por quais razões devemos aprender sobreHistória da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Uma das formas de afirmar a importância dessa prática é observar a grande quantidade de elementos culturais presentes em nossa história, cujas origens remontam à herança dos africanos escravizados no Brasil.

A história da escravidão negra por décadas foi “brandamente” tratada nos livros didáticos e expunha a trajetória de homens, mulheres e crianças que foram capturados e escravizados no continente africano, vendidos como “coisas”, objetificados e destituídos da condição de humanidade. Aprendemos muito sobre uma condição jurídica imposta ao homem negro, a escravização. Mas há muito que aprender sobre a capacidade de resistência que esses homens e mulheres mobilizaram para construir o Brasil.

As fontes trazem ao historiador vozes com as quais ele interage, dialogando com homens e mulheres de um tempo vivido. As especificidades e tipologias das fontes trazem contribuições para interpretações do trabalho historiográfico. Ao mesmo tempo que testemunham a polifonia dos discursos de sua época, transformam a experiência do historiador, que percebe o desafio de constituir a narrativa histórica, da qual faz parte.

A história do negro não é o que restou da historia da escravidão. Há de se ler as fontes e nelas buscar a presença do povo negro a partir de suas próprias construções, resistências, culturas, modos de ser e fazer. É exatamente o olhar atento para as informações contidas nas fontes que permite dar voz às mulheres e homens que foram silenciados em suas histórias.

O fim da escravidão formal instaurou a invisibilidade da população negra. A mão de obra escrava foi substituída por outras, dentre elas a do imigrante. Paulatinamente, o Estado abandonou a população negra à própria sorte. Nenhuma política pública foi constituída para incluir as brasileiras e brasileiros recém-libertados na educação, no trabalho, nos cargos públicos. Ao contrário, a discriminação e o preconceito a toda expressão cultural da população negra, ia paulatinamente sendo institucionalizada: os cultos africanos foram tomados como expressões demoníacas; a capoeira, herança ancestral africana, fora vista como ameaçadora, como prática criminosa, interpretada como movimento marginalizado;a dança e a arte foram vistas como práticas de gente atrasada. O que dizer dos homens negros, perigosos, insolentes, incapazes, intelectualmente limitados. Deveriam ser controlados com o uso da violência estatal. Às mulheres foram atribuídos diversos estereótipos: sediciosas, objetos sexuais, mulheres boas para cama, mas não para o casamento. Essas formas estigmatizadas de ver as mulheres e homens negros atravessaram os séculos e sutilmente continuam vivas no imaginário social brasileiro.

O Brasil tornou-se o país com o maior volume de pessoas negras fora do continente africano. Mas a presença de tantas pessoas não foi motivo de orgulho, ao contrário representava um entrave à civilização, haja vista a defesa e aceitação por parte dos governantes brasileiros das teorias racistas iniciadas no século XIX, que propunham a miscigenação e branqueamento da população. O racismo se estruturou na base das relações sociais mantidas entre a senzala e a casa grande e continuou. O racismo cria, mantém e perpetua as relações sociais de dominação de um grupo sobre o outro.

Refletir sobre as relações étnico-raciais que construíram o Brasil deve ser visto como essencial para entender a identidade como brasileiros, um passo para o entendimento e desconstrução do racismo e dos estereótipos que desqualificam a luta dos afrodescendentes.

A educação pode ser vista como um processo privilegiado de transmissão da herança cultural com capacidade para educar as gerações futuras. Somos nós pesquisadores, historiadores, instituições, política e governos que escolhemos os conteúdos que devem ser discutidos e/ou silenciados no ensino, portanto, somos responsáveis pela inclusão temática das relações raciais nos diversos âmbitos formativos. Essa é uma das razões de instituição da Lei 10.639/03, complementada pela Lei 11.645/08 que incorpora também o estudo da questão indígena.

No imaginário social, muitos brasileiros percebem a África como um continente assolado pelas misérias, doenças, guerras tribais, terrorismo e atrasos. Compreender a riqueza cultural, artística e intelectual dos povos africanos é premissa para o reconhecimento da riqueza cultural que herdamos desses povos. Precisamos conhecer a história de outro continente africano, por uma ótica menos “europeizante”, a história protagonizada pelo olhar do próprio africano. Isso nos levaria a compreensão de que aquilo que a história fixou como inferioridade da raça negra, é na verdade fruto de oportunidades desiguais. Condições sociais e econômicas igualitárias geram empregos, salários, sustentabilidade e oportunidades de investimentos em educação, saúde, segurança, moradia, trabalho, que são direitos de cidadania.

O trabalho e o cuidado do historiador no trato com as fontes devem ser constantes, pois o que o historiador capta e as perguntas que faz vão se transformar em conhecimentos e saberes que informam e formam gerações. Portanto, o trabalho do historiador pode contribuir na redução da discriminação, do preconceito e de estereótipos sobre a população negra.

O negro esteve na condução de muitas atividades que projetaram o Brasil. As fontes que tratam do período colonial e do impériomostram a presença de negros na literatura, nos ofícios da saúde, na segurança pública, nas forças militares, no ensino, como intelectuais. Ressaltar essas histórias e trazê-las para o universo da sala de aula contribui para que negros e não negros possam compreender o “projeto da nação brasileira”. O trato das informações contidas nas fontes permite sair esquema interpretativo que opõe resistência e dominação como os únicos elementos constituintes na historiografia do povo negro. Não foram os processos de dominação a única maneira de dar visibilidade a identidade do povo negro no passado. Há de se compreender que a participação do povo negro no processo de formação da identidade nacional não se fez apenas a partir da domesticação. É possível pensarmos em outros lugares sociais ocupados pelos negros e negras na sociedade. É preciso ponderar sobre essas questões sem deixar de reconhecer que, de fato, em várias situações de contato, prevaleceram relações perversas de dominação, mas não reduzir a história da população negra a esses processos de desqualificação. Torna-se necessário a partir da investigação desses processos, no contato com as fontes, problematizá-los.

Nesse sentido, no interior das formas de dominação, é necessário interrogar sobre o lugar dos atores sociais na formação da “nação brasileira”. Se, por um lado, a exclusão racial era o mote constitutivo das análises, num contexto em que o processo situacional era predominantemente marcado por formas de exclusão, por outro, fica ausente, nos estudos, a localização dos negros como atores sociais que, integrados a uma realidade mais ampla, política e cultural, podiam interagir e ressignificar suas próprias identidades.

Leituras cuidadosas das fontes produzem histórias também cuidadosas, que ao entrar no interior das escolas funcionam como mecanismos que melhoram a autoestima de alunos negros que vêm suas histórias valorizadas. Essas atitudes auxiliam no enfrentamento à produção de uma história única. Impactam na preservação da memória e minimizam as práticas de racismo que são nada menos do que frutos da ignorância sobre o lugar e importância do negro na história do Brasil.


* Pedagogo e licenciado em História pela PUC Minas. Professor na Faculdade de Políticas Públicas da UEMG. Pesquisador no Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno – UFMG.

Imagem de destaque: UNICEF/ANGOLA/2014/Federica Polselli/ Reprodução

 

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