A Peste Negra e a Covid-19. O que Boccaccio tem a nos ensinar?

Ione Ribeiro Valle*

Reler o Decamerão, de Giovanni Boccaccio (1313-1375), me permitiu uma reaproximação com a experiência dramática provocada pela peste que atingiu a Europa no século XIV. Sem ignorar o poder devastador da lepra, a Peste Negra tem sido considerada como a primeira de uma série de doenças contagiosas e que neste momento retorna por meio da pandemia da Covid-19.

Boccaccio reúne nesta obra cem novelas, narradas por dez jovens (sete mulheres e três homens) que fugiram de Florença em 1348 para viver nos campos e experimentar prazeres e divertimentos intensos, num total esquecimento dos horrores que estremeciam sua cidade natal.

O autor de o Decamerão oferece uma pintura viva da sociedade tal como a vivenciou, por meio de quadros que abrangem o servo humilhado e o poderoso barão que com apenas uma palavra, um gesto, envia qualquer um à morte; a cortesã que vende seu corpo e a grande dama que se doa; a princesa de sangue real e a jovem humilde que vive trabalhando, tocadas pelo ardor do amor; o cavalariço apaixonado pela rainha que, graças à sua inteligência e vontade, consegue satisfazer sua paixão; o rei bem humorado e paterno que se deixa enganar como um simples burguês; o monge preguiçoso e comilão, sedutor de mulheres e exibidor de relíquias fantásticas e o abade mitrado, detentor de muitos bens, que disponibiliza sua mesa aos passantes.

Os quadros apresentados nesse conjunto de novelas estão atravessados por um dos princípios fundantes dos tempos modernos: a igualdade. Boccaccio não hesita em afirmar que todos os homens nascem iguais e que as únicas nobrezas são a inteligência e a virtude, contrariando assim a hierarquia medieval alicerçada na aristocracia de nascimento.

Em o Decamerão é explicitada a precariedade da existência, de uns mais que de outros, podendo ser lida como denúncia de uma sociedade em que predomina o salve-se quem puder; uma sociedade que, por estar familiarizada com a miséria, a violência e as doenças, banaliza a morte: “Não escutamos outra notícia senão que “’Fulanos e fulanos faleceram’ e ‘Sicranos e sicranos estão à porta da morte’”.

Banalização da morte que nos surpreende ainda hoje. Apesar do número de vítimas da Covid-19 crescer exponencialmente dia após dia, assistimos a manifestações contrárias a medidas preventivas, como a quarentena, amplamente testada pelas epidemias/pandemias ao longo da história. Pasmamos também com o sentido atribuído à morte pandêmica por certas autoridades: “é o destino de todo mundo”; advém da ira divina para punir pecadores, pobres, doentes e idosos compondo esse grupo.

Tendo devastado grande parte da Europa, a Peste Negra põe a nu as desigualdades, assim como a Covid-19 está fazendo hoje: os mais desfavorecidos são os mais fortemente atingidos e os menos assistidos. A morte pandêmica é portanto uma morte seletiva. É à explicitação das desigualdades que se dedica Boccaccio, o que pode ser ilustrado por meio de alguns excertos: falta de assistência médica: “sobreveio a morte de inúmeras pessoas, que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrência da escassez de serviços no momento azado, que os doentes precisavam mas não alcançavam […], era tão grande o número dos que faleciam, de dia e de noite, nas cidades […]”; precariedade das condições de vida: “O tratamento dado às pessoas mais pobres, e à maioria da gente da classe média, era ainda de maior miséria. Em sua maioria tal gente era retida nas próprias casas, ou por esperança, ou por pobreza. Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares por dia […]; abandono social: “No condado – vamos pôr de parte os castelos […], os operários, míseros e pobres, faleciam. Tombavam sem vida, pelas vilas isoladas e pelos campos, com suas famílias […]; faleciam não como homens, e sim como animais, nas ruas, nas plantações, nas casas, dia e noite, ao deus-dará”; impossibilidade de compaixão de familiares e amigos: “Eram em número reduzidíssimo aqueles aos quais eram concedidos os prantos piedosos e as lágrimas sentidas de seus próprios parentes. O féretro destes era carregado não por honrados e prestimosos cidadãos, porém por uma espécie de padioleiros, que se originaram da gente mais humilde, que recebiam o título de coveiros, e que apenas usavam seus préstimos por um preço combinado por antecedência.”

O Decamerão me levou, enfim, a pensar numa “revolução simbólica”, nos termos de Bourdieu, que deverá advir da pandemia da Covid-19. Inspirando-nos em Boccaccio e outros grandes homens que souberam interpretar seu tempo, precisamos estar preparados para agir diante do surgimento de novas estruturas cognitivas e sociais; estas já começaram a povoar nossos espaços educacionais e acadêmicos. As desigualdades, agora mais visíveis, não autorizam nosso silêncio.

Referências

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

* Pedagoga, mestre em Ciências Sociais e doutora em Ciências da Educação. Professora associada do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora o Grupo de Pesquisa Ensino e Formação de Educadores em Santa Catarina e o Laboratório de Pesquisas Sociológicas Pierre Bourdieu (Burdiê).


Imagem de destaque: O Triunfo da Morte, de Pieter Bruegel, o Velho, (1562). Museu do Prado em Madri. Fonte: WikimediaCommons

 

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