A pandemia desnuda

Léo Heller*

Nestes tempos diferentes de pandemia, tem sido muito ressaltado que, mesmo sob o caos sanitário, social e econômico criado, a doença tem tido o dom de desnudar vários aspectos da realidade e do modelo político e econômico sob o qual várias sociedades se organizaram. Há previsões do futuro “pós-pandemia” ou sobre o “novo normal”, ambos os termos polêmicos, pois por um lado se sabe que outras pandemias virão e, por outro, não se sabe se haverá algum “normal” no futuro. Projeções que vão desde o fim do capitalismo até seu maior fortalecimento e a maior concentração de riqueza têm abundantemente frequentado as análises que circulam pelas redes sociais. Mas penso que talvez duas das principais lições desta crise sejam: nossa limitação para enxergarmos (eu, você, os cientistas políticos, os economistas, os planejadores…) o futuro e a contingência – sanitária, climática, política, social, demográfica … – que cada vez mais caracterizará nossa realidade (os filósofos pré-socráticos já falavam no “mundo contingente”!).

Apesar do duplo sentido do título deste texto, não pretendo mostrar a pandemia desnudada (“desnuda” como adjetivo), embora seja muito interessante que outros aventureiros o façam, por exemplo mostrando a farsa dos números oficiais, a vitória dos interesses econômicos sobre o salvamento de vidas ou os crimes lesa humanidade cometidos por psicóticos, autistas e negacionistas no poder.

Em outro sentido, gostaria de abordar o que a pandemia desnuda (“desnuda” como verbo). Para tanto, uso como exemplo o tema sob o qual venho me dedicando há longo tempo: o acesso a serviços de água e esgotos.

Estima-se que quase a metade da população brasileira não tenha acesso a serviços adequados de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. O acesso a esses serviços é explicitamente assumido pela legislação internacional, à qual o Brasil tem obrigações legais de obedecer, como direitos humanos.

Os mais de 90 milhões de brasileiras e brasileiros excluídos do acesso a esses serviços essenciais, que dependem fortemente da ação do Estado, porém, não se distribuem uniformemente pelos grupos populacionais. Os excluídos desses serviços revelam com tintas fortes a face perversa de um dos países mais desiguais do mundo: são preto(a)s ou pardo(a)s, em situação de pobreza e de baixa escolaridade. Vivem predominantemente nas zonas rurais e nos assentamentos informais, em cidades pequenas, no Nordeste e no Norte. Indígenas e quilombolas são usualmente deixados à margem da ação do Estado nesse campo.

É óbvio que esse quadro não emerge casualmente. Ele é fruto de um histórico descaso do Estado brasileiro, incapaz que tem sido de manter políticas públicas estáveis, gerando oscilações na gestão, no financiamento e na regulação dos prestadores de serviços. Esta omissão do Estado para com uma política, que deveria ser orientada pelo princípio fundamental da igualdade e não-discriminação, própria dos direitos humanos, é grave e compromete compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a legislação internacional e a sua própria Constituição.

O que tudo isto tem a ver com a pandemia?

É generalizada a compreensão de que a higiene, sobretudo das mãos, é uma das principais barreiras contra a expansão da epidemia. Estudos científicos vêm demonstrando isto e o chamamento à lavagem das mãos se transformou em um mantra dos infectologistas, virologistas, epidemiologistas e gestores em saúde. Lavar as mãos é mais acessível e tem menor custo que outros meios de higienização, como usar álcool em gel. Uma prática sistemática de lavagem das mãos e isolamento social é a combinação mais adequada para a contenção da epidemia, o achatamento da curva e o alívio aos nossos parcos recursos hospitalares. Para se lavar as mãos, necessitamos apenas de dois ingredientes: água e sabão. Se sabão é um produto do “mercado”, água é um bem que requer a presença do Estado. Em raras situações, o ser humano consegue se abastecer de água com base em seus próprios recursos.

O que a pandemia desnuda neste aspecto? Que justamente as pessoas que não têm seu direito humano realizado, com acesso a quantidades adequadas de água, de forma contínua, serão as menos capazes de acionar esta barreira. Além disso, são pessoas que acumulam outras dimensões de vulnerabilidade, como a vida em situações de aglomeração, menor capacidade de cumprir com o isolamento social, serem vítimas de privação econômica acarretada pelas políticas de enfrentamento da pandemia ou terem limitações para acesso ao sistema de saúde. Ou seja, a falta de acesso à água adiciona uma camada de vulnerabilidade a outras nessas populações, gerando importantes desigualdades no adoecimento e morte devido à COVID-19.

Para os que ainda acreditam no slogan de que a doença é “democrática”, basta olhar para a sua distribuição segundo os grupos sociais. Ou ainda se sustentaria uma visão de que pessoas em situação de rua ou moradores de vilas e favelas enfrentam os mesmos riscos de adoecer e morrer quando comparadas aos que vivem confortavelmente nos bairros abastados?

A pandemia desnuda que cumprir com os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário controla pandemias e assegura dignidade a todos e todas em tempos sem pandemia.

*Pesquisador da Fiocruz-Minas

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Gelani Banks / Unsplash

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