A Pandemia de Agora e a Pandemia de Sempre

Carlos Rodrigues Brandão

Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Carlos Drummond de Andrade
Mãos dadas

Vivemos uma nova pandemia. A humanidade terá vivido inúmeras outras. E mesmo a Idade Moderna viveu e segue vivendo pandemias como esta de agora. Ou piores.

Mas há algo na pandemia de agora que tem sido pouco comentado. Embora esteja sendo muito alertado. E é sobre isto que eu quero pensar por escrito com vocês.

Quem nos afeta é um vírus. Vírus são seres tão ínfimos que colônias deles podem habitar uma bactéria igualmente ínfima. E os vírus sempre nos habitaram. Um resfriado é uma infestação deles. A COVID-19 é outra. Só que menos frequente (esperemos) e bem mais mortal. Afinal, eles já estavam, como as bactérias, milhões e milhões de anos aqui na Terra, antes de nós chegarmos nela.

E fora o mal que podem fazer às pessoas, entre o sintoma leve, o sofrimento e, no limite, a morte, esses infinitamente pequenos seres que podem nos habitar, nos tornam não apenas os seus hospedeiros, mas os seus portadores. E isto é muito triste.

Quando surgiu o Vírus da AIDS, éramos também nós, homens e mulheres, os hospedeiros, os portadores e os transmissores deles. Mas com uma diferença, e não pequena. Então os vírus eram passados de pessoa a pessoa através de gestos de amor e atos de desejo. Entre o beijo e a cópula (ou a “transa”, um nome bem mais nosso) era entre os sumos e sucos dos corpos íntimos que a doença era passada de um a outro, de um a outra. Lembro-me, com horror, quando pregadores e moralistas afirmavam que aquela doença, se não era o “próprio pecado”, era o castigo divino pelos nossos pecados.

Agora não. Com a COVID-19, uma pequenina palavra minha, carregada de ínfimas gotículas com o mal que habita em mim (e nem sei disso) pode adoecer o meu amigo e pode matar a pessoa que eu amo. Nossos corpos de perto, mesmo antes do toque e sem o abraço, são a nossa ameaça. Nunca fomos tão terrivelmente poderosos.

Um desconhecido infecta o Primeiro Ministro da Inglaterra.  A filha vinda da rua e do trabalho infecta o pai morador em um barraco na Rocinha. Estamos condenados a evitar a pessoa do outro.  A não ser entre as raras pessoas com quem compartimos os mesmos reclusos “cenários de quarentena”, todas as outras mulheres e todos os outros homens podem carregar dentro de seu corpo o que nenhum mal lhe fará, pois são resistentes aos “sintomas da doença”. Mas o invisível mal que se me atingir, que pode me matar sem que ela saiba… e nem eu.

Esta pandemia virótica vai passar um dia. Quando? Amanhã?  Em maio?  Em setembro? Em 2021? Não sabemos, Mas sabemos que um dia ela vai passar. E outra vez sairemos juntas de mãos dadas. E para o abraço!

Mas há uma outra que fica. Ela vem de bem mais longe. Bem mais! Ela não nos impede os gestos do afeto, entre apertos de mão, abraço, beijos e o que mais haja e seja entre os nossos corpos.

Ela agora nos dá menos notícias. Bem menos. E, no entanto, para quantas pessoas, entre crianças e idosos, ela é bastante mais perversa. Bastante mais mortal. Basta ler um informe da OMS, ou dos Médicos sem Fronteiras, para saber o já sabido. Pois morrem por dia mais crianças, mais mulheres, mais idosos, de fome, de disenteria e de outras enfermidades de que por felicidade estamos salvos, do que todas as pessoas vitimadas pela COVID-19.

Não quero me estender em dados que conhecemos e nem buscar as causas e os causantes de vivermos em um Mundo em que a diferença entre a extrema minoria dos “muito ricos” e a imensa maioria dos “muito pobres” é desumanamente desmesurada, e cresce a cada ano. Com a diferença de que a pandemia do Corona Vírus irá embora. E esta outra pandemia…?

Trancados em casa, isolados da presença do outro, cujo corpo é para mim uma possível ameaça, por algum tempo nos descobrimos solidários. Por todo lado crescem coletivos empenhados em contribuir, em ajudar, em partilhar.  Que assim seja! Mas… e quando “tudo isso” passar?

Ouço falarem, e leio também, que “depois de tudo isso o Mundo nunca mais será o mesmo?” Espero que não seja. E temo que permaneça sendo.

E se “não for mais o mesmo”… como será?  O capitalismo globalizado que nos faz acreditar que “Agro é pop! Agro é Vida!”, enquanto devasta a suave e fecunda pele verde deste País, voltará ainda mais poderoso e “global?” A distância maldita entre a suprema riqueza e a extrema pobreza deverá aumentar ainda? A força dos senhores do poder, associados (como sempre) aos senhores da ganância e do lucro desmedido deverá voltar mais poderosa ainda? Outros “Brumadinhos” acontecerão e, como sempre, serão explicados como desastres inevitáveis em nome do progresso e do desenvolvimento… do que? De quem? Para o que? Para quem?

Não quero dar um teor político a essa mensagem que, afinal, sonha ser uma fala de esperança.

Sou um antropólogo avesso a estudos sobre o poder e a política, até porque dediquei minha vida de pesquisador, de educador e de militante aos camponeses; aos “sem-terra desta Terra com tantas terras; aos criadores das culturas populares, mulheres e homens, sábios “do campo e do sertão”, a quem devo bem mais do que eles imaginam. E também aos meus alunos, minhas alunas, que mais do que as teorias, me ensinaram a ser professor.

Quero pensar por escrito que se “depois de tudo isso o Mundo não será mais o mesmo”, a pergunta a fazer não há de ser: “então que Mundo ele será?”… e esperar que a TV Globo, ou o mandatário de plantão a serviço do mundo dos negócios nos diga “como ele deverá ser”.

Acho que a pergunta é outra. E por mínimo que seja o alcance de minhas ações, a pergunta deveria ser: “E o que eu posso fazer para que depois de tudo isso o Mundo não siga sendo como ele é?”

E lembro agora, quando em tempos em que podíamos sair às ruas e nos abraçarmos, abraçando também as “nossas causas e as nossas lutas”, em nossas caminhadas pelas ruas da cidade onde nos reunimos para mais um Fórum Social Mundial, nós bradávamos juntas e juntos: “um outro mundo é possível!”

E “um outro mundo” é não apenas possível, mas é urgente; desesperadamente urgente. Em uma triste era em que a “Teologia da Libertação” vai sendo silenciada, e parece dar lugar aos brados ilusórios de uma “Teologia da Prosperidade”, mais do que nunca é preciso não esquecer que a palavra “empreendedor” tem dentro dela a palavra “prender”, e também a palavra “dor”.  Se for para empreender, saibamos aprender a empreender o que faz deste injusto Mundo, um “outro Mundo possível”.

E desde agora – e mais ainda quando nós pudermos “sair para o abraço”, nas ruas e entre a “nossa gente” – esta é a hora de começarmos a buscarmos juntas e juntos não “o que poderia existir para um outro mundo possível”, mas “o que nós podemos fazer para que ele, passo a passo, comece a existir”.

Um mundo mais solidária e generosamente humano, mais livre, mais sem fronteiras, mais escancaradamente aberto, mais justo e mais inclusivo. Mas partilhadamente feliz, afinal. Pois razão de existirmos no Mundo é a felicidade. Mas só seremos felizes quando a outra pessoa, ao meu lado ou longe de mim, do outro lado do oceano, for por igual também feliz.

Por toda a parte – mas longe do alarde promocional das mídias globalizadas – inúmeras pessoas e coletivos de pessoas estão empenhadas em fazer algo para solapar a “economia de mercado” centrada no lucro, em nome de uma “economia solidária”; uma “economia do dom”, centrada nas Pessoas e na Vida de todos os seres que conosco partilham a Vida neste pequenino e primoroso Planeta Terra.

Sem deixar de lado o conhecimento crítico sobre o que fazem os que estão fazendo os “senhores do dinheiro e do poder”, procuremos conhecer o que estão pensando e praticando pessoas que desde incontáveis lugares da Terra, por toda a parte estão criando laços e enlaces de uma “outra Vida provável”, em direção a “um outro Mundo possível”.

Lembro alguns nomes. O Altermundismo (o outro Mundo aqui e agora, construído por nós); a Economia Solidáriaa Economia do Dom, a Simplicidade Voluntária, a Educação Popular,  A Teologia, e também  a Política e a Psicologia da Libertação, a luta dos “sem-terra pela terra, a vocação de um Ambientalismo para além dele mesmo, até chegarmos a um ponto em que qualquer Ser Vivo valha tanto quanto a própria Vida.

Lembrei apenas uma fração de tudo o que há, e de tudo o que poderá vir a haver “Quando tudo isso acabar”.

E “quando tudo isso acabar” em que Mundo estaremos desembarcando?

E o que você que saiu viva de “tudo isso”, pode fazer, unida a outras pessoas, para que nunca mais o “Mundo de depois de tudo isso”, siga sendo o mesmo Mundo que gera e nos impõe  “tudo aquilo” que entre outros males, gerou também “tudo isso”.

Estejamos juntas! Juntos! Sigamos na Vida. E com Esperança!

Afinal, o Mundo em que vivemos mal está começando a começar.

Carlos Drummond de Andrade me ajudou a abrir esta mensagem. Que a poesia de Cecília Meireles me ajude a terminá-la.

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos,
para verem mais.
Multiplica os teus braços
para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros para as visões novas.
Destrói os teus braços que tiverem semeado
para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro.
Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.

Cânticos
o Cântico XIII

22 de abril de 2020

Dia em que celebramos a Mãe Terra


Imagem de destaque: Elena Mozhvilo / Unsplash

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