A ordem do dia de 31 de março A ordem do dia de 31 de março

Antonio Carlos Will Ludwig

Tal como já ocorreu em anos anteriores, no dia 31 de março passado, o Ministério da Defesa divulgou um texto pertinente ao Movimento de 1964. Nos dias que se seguiram à sua veiculação emergiram algumas manifestações públicas referentes ao seu conteúdo. Após lê-lo e nos cientificarmos de alguns posicionamentos irradiados nos meios de comunicação, concluímos que por apresentar uma versão não amplamente aceita sobre um momento destacado e inesquecível da história brasileira ele precisa ser examinado com base em uma abordagem apropriada, ou seja, a análise de discursos.

Em função dela e logo no começo dessa análise notamos que as palavras mais repetidas foram democracia e ameaça. O texto inclina-se para o lado da associação entre as duas. Veja-se que já no início emerge este liame pois se encontra declarado que “O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”. Logo a seguir aparece outra ligação: “ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias”.

Esta ideia de intimidação ao regime democrático é reforçada por meio de outras colocações: “enquanto a humanidade tratava os traumas do pós-guerra, outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários”; “as instituições se moveram para sustentar a democracia diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder”; “a sociedade brasileira, os empresários, e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram”. Estas frases possibilitam estabelecer a inferência de que o referido movimento emergiu para garantir a sobrevivência da democracia.

Logo a seguir aparece a expressão: “as Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis”. Segundo o texto esse movimento liderado pelas instituições bélicas, que avançou durante alguns anos, foi muito benéfico para o país, haja vista que “o Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo”     .

Nesta ordem do dia é possível identificar que um de seus pressupostos é a visão de mundo funcionalista, essencialmente conservadora, adotada pelos militares a qual deve, segundo o pensamento deles, ser aplicada na vida em sociedade. Nela não pode existir espaço para manifestações contestatórias, conflitos e rebeldias. Cada um deve apenas cumprir o papel social que lhe é pertinente para que a sociedade se mantenha estável e equilibrada no decorrer do tempo.

Outro pressuposto é o da superioridade dos militares em relação aos paisanos o qual vem acompanhado da postura de defesa da autonomia das instituições castrenses e da atitude de tutela sobre a sociedade civil. A frase: “as Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis “é bastante reveladora assim como      também é bem sintomática a expressão registrada no texto: “ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas”.

Salta aos olhos do leitor a lacuna que existe entre o parágrafo que termina com a frase: “o Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo” e o que começa com a frase “a Lei da Anistia de 1979”. A esse respeito vale lembrar que nos anos antecedentes à      sua promulgação muitos eventos que surgiram e provocaram várias consequências contribuíram para o seu aparecimento. Houve portanto uma intenção deliberada de fazer omissões, ou seja, de não mencionar estes eventos, talvez porque alguns deles se revelaram repulsivos ou condenáveis.

Chama a atenção também a forma como a ordem do dia foi elaborada. Ela se inicia e se encerra por meio da frase: “O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira”      porque foi capaz de reagir e evitar. Tal frase juntada a outras: “o Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo”, “o Brasil evoluiu”, “as instituições foram regeneradas e fortalecidas”, “a convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada ” e “hoje os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade” inclinam-se a indicar que todos estes acontecimentos positivos só surgiram por causa do referido Movimento e das ações concretizadas nos anos posteriores.

Cabe realçar ainda um derradeiro aspecto do texto. Ele diz respeito às lembranças, provavelmente desagradáveis, que devem continuar vivas na memória de muitos militares. Parece-nos que a frase: “os aprendizados daqueles tempos difíceis” permite fazer esta colocação. Na sequência aparece escrito que a “Marinha, o Exército e a Aeronáutica […] continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático”. Esta frase juntamente com a anterior autoriza a pensar que os servidores fardados estão acometidos de ressentimentos e conscientes dos desgastes sofridos e, consequentemente, não estão mais propensos a se envolverem em uma aventura intervencionista.

De modo resumido pode ser dito que a referida ordem do dia propõe que o Movimento de 1964 emergiu porque a democracia se encontrava sob ameaças e a intervenção militar conseguiu afastá-las. Os militares que se alternaram na direção do país realizaram uma boa governança e respeitaram a democracia. Depois de vários anos ela se fortaleceu, os civis reassumiram o governo da nação e os militares não mais têm a pretensão de fazer ingerências na área política. Observe-se que esta narrativa se assemelha muito à concepção romântica relativa aos soldados salvadores.

Muitos sabem que esta versão do ocorrido não é aceita pela grande maioria dos estudiosos do assunto porque a consideram frágil e limitada. Existem diversas publicações que examinam este período da história em função de referenciais teóricos bastante consistentes e respeitáveis que contestam adequadamente esta explicação. O persistente apego dos funcionários fardados a ela aliado ao desinteresse em fazer uma revisão da postura adotada não contribui em nada para dirimir os ressentimentos e as animosidades que se encontram impregnadas nos civis.

Esta ordem do dia que vem se repetindo ano após ano, a qual leva em conta apenas os possíveis acertos e não os erros cometidos durante os vinte anos de governo a partir de 1964, juntamente com a ausência de uma declaração explícita e inequívoca de não mais intervir corporativamente na política ajuda a manter a cisma dos civis em relação à conduta dos funcionários fardados que já aflorou diversas vezes neste ano consequentes das turbulências provocadas pelo atual presidente da república em meio à uma crise sem precedentes provocada pelo avanço do coronavírus. Não interessa nem um pouco à estabilidade, à perenidade e ao enraizamento do regime democrático a manutenção da persistência exibida pelos funcionários fardados e a desconfiança constantemente manifestada pelos civis.


Imagem de destaque: Fernando Frazão/Agência Brasil

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