A morte é viver debaixo das botas dos outros

Antônio Eustáquio de Oliveira Fam
Vagner Francisco Martelo

A Constituição Brasileira de 1988 vem para instituir “um Estado Democrático” que se destina, entre outros exercícios dos direitos sociais, assegurar “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (Constituição Brasileira de 1988 – Preâmbulo). Em 2003, uma importante vitória foi conquistada em prol dessa democracia: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) número 10.639/03,que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, sejam eles públicos ou privados, dando um valioso passo para a descolonização dos currículos educacionais.

Segundo o IBGE, a maior parte da população brasileira é miscigenada, portanto, parda.  No Censo de 2016, 46,7% do povo do Brasil se autodeclarou parda (pessoas com mistura de cor de pele/raça) e 8,2% se declarou preta, ou seja, mais da metade da população considera que suas origens estão além dos povos europeus, olham no espelho e se veem índios, negros, asiáticos, e não “somente brancos”. Posto isto, como explicar o currículo escolar de um “Estado Democrático” formado por um povo maioria miscigenado e negro dar mais valor a uma epistemológica eurocêntrica?

O povo vem lutado ao longo da história para conquistar o poder (democracia, do gregodemos, “povo”, ekratos, “poder”) e os nomes dos protagonistas negros e pardos desta luta têm sido negligenciados nas salas de aula. Não só os seus nomes, mas também suas culturas, seus deuses, suas crenças e seus valores. O negro vem lutando historicamente pela “igualdade e justiça como valores supremos” e agora começam a ser reconhecidos pelos seus feitos nas salas de aula pela força da lei 10.639/03 do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Não só nas escolas.

Filmes, peças de teatro, a inclusão do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar, são testemunhas que vem para legitimar o papel histórico dos negros, não como escravos, mas sim como escravizados que lutaram pelos seus direitos e ainda lutam, sendo “fazedores da própria história”. E estes protagonistas que foram silenciados pela cultura eurocêntrica aos poucos vão tomando espaços em diversos meios, e suas vozes sendo escutadas.

No filme “Besouro” (2009), exemplo destes espaços mencionados, é relatada uma importante vitória da democracia com a história de Manoel Henrique Pereira (1895 – 1924), mais conhecido como Besouro Mangangá. Besouro, muito antes de Lula nascer, também lutara por igualdade, respeito e liberdade. É provável que até então tenha sido pouco conhecido,em parte, graças aos currículos pedagógicos e cultura eurocêntrica. Capoeirista, discípulo de Mestre Alípio em um país que proibia a capoeira por lei, sendo escravizado em uma pátria que abolira a escravidão, ele vai à luta após o assassinato de seu Mestre botando fogo nas plantações de cana do Coronel do Recôncavo Baiano e quebrando o engenho. Neste contexto de medo, insegurança e tortura é que Chico, amigo de Besouro, que teve as pernas quebradas pelo Coronel discursa:

“Vocês não estão entendendo o Besouro. O que ele está fazendo… Eu duvidei. Está na cara gente! Está na cara que ele está continuando a obra de nosso Mestre… Mestre Alípio!
Ele está dando luz. Está dando início a luta de que tanto Mestre Alípio falava.”

Muitos outros momentos dessa obra cinematográfica fazem menção a essa luta histórica do povo afro-brasileiro. Diz Mestre Alípio antes de morrer que “escolhi você [Besouro] pra continuar o que comecei”. E nas cenas finais, já no pós-vida, Mestre Alípio diz: “Não tenha medo, Besouro, a semente já foi plantada; nosso povo vai acordar”. E, como resultado, em 1937 a capoeira foi tolerada, em 1953 foi totalmente liberada e em 2008 a capoeira foi decretada como Patrimônio Cultural Brasileiro.

O oitavo ano do século XXI contou com outra importante vitória da democracia legitima ainda no mandato de Lula: a lei 11.645/08 que modifica a lei 10.639/03 da LDB, tornando também obrigatório o estudo da história e cultura indígena. Segundo Nilma Gomes, essa lei:

“(…)não é somente mais uma norma: é resultado de ação política e da luta de um povo cuja história, sujeitos e protagonistas ainda são pouco conhecidos, assim como Besouro Cordão-de-Ouro, o capoeirista cuja história foi contada.” (p.104)

É bem verdade que a luta pela democracia ainda continua. O mito da democracia racial tem que ser exposto cada vez mais, não somente nas salas de aula, mas em toda a sociedade. Sementes como as do Mestre Alípio, Besouro e Lula “vão acordar” todo o povo brasileiro para construção de uma sociedade que realmente assegure “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. E para tal é imprescindível que se reconheça os reais protagonistas dessa história, que se reconheça o negro, não como escravo, pois ninguém é naturalmente escravo, mas sim um negro escravizado, que sofreu e sofre injustiças, mas ainda assim luta, ainda assim é fazedor de sua história e emancipação. Se estas histórias não forem contadas nas escolas, não forem retratadas nos filmes e peças teatrais, se elas não estiverem nos livros didáticos e na lei que deveria servir ao povo, com certeza vai resistir nas canções de roda da capoeira, no “boca a boca” do povo, pois, para este povo, “a morte não existe (…) a morte é viver debaixo das botas dos outros”.

As vitórias de Mestre Alípio e Besouro vêm se somando às de Lula e tantos outros, como Luís Gama (1830-1882), FranciscoNascimento (1839-1914),Maria Firmina (1825-1917), André Rebouças (1838-1898) e Maria Tomásia Figueira Lima (1826-1902), confirmando os ensinamentos do Mestre de Besouro que diz: “Um [indivíduo] pode ser forte, pode ser valente mas dois é mais forte… Três é mais forte ainda. O povo todo junto é muito forte”.


PARA SABE MAIS:

BESOURO (2009), dirigido por João Daniel Tikhomiroffe inspirado no livro “Feijoada no Paraíso” (2002), de Marco Carvalho

Brasil e o mito da democracia racial, por Catarina Bandeira

Manoel Henrique Pereira, Besouro Mangangá, por Projeto Educação Com Ginga

Muito além da princesa Isabel, 6 brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil, por Amanda Rossi e Camila Costa para BBC Brasil

O filme como recurso didático para a implementação da lei 10639/03 [PDF], por Mário Ferreira, Zenaide Rocha e Marilu Oliveira

Imagem de destaque: Reprodução / Besouro

http://www.otc-certified-store.com/antivirals-medicine-europe.html www.zp-pdl.com https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php zp-pdl.com http://www.otc-certified-store.com/cardiovascular-diseases-medicine-usa.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *