A LEGITIMIDADE DAS ESCOLAS CÍVICO MILITARES – II

Antonio Carlos Will Ludwig

O processo de civilianização das Forças Armadas, que de modo sintético pode ser entendido como a ocorrência de influxos civis nas instituições militares, já possui muitos anos de idade e continua avançando principalmente nos países desenvolvidos. Ao lado da diminuição do contingente de soldados a profissionalização está substituindo a conscrição e o número de militares temporários encontra-se aumentando, inclusive em nosso país. Em decorrência, a sindicalização deles está se expandindo, proporcionando o afloramento de reivindicações salariais e melhorias nas condições de trabalho. A presença de funcionários paisanos já é bastante significativa nas organizações castrenses, e o desenvolvimento e o emprego da tecnologia bélica tem transformado civis em possíveis combatentes. Por sua vez, as batalhas assimétricas podem colocar civis e militares lado a lado. As Forças Armadas privadas que continuam sendo acionadas exibem um comportamento bastante parecido às empresa produtivas civis. Mencione-se também o ingresso das mulheres nas hostes castrenses e a presença de militares possuidores de orientações sexuais diferenciadas. Observe-se ainda que o regime político democrático tem se revelado capaz de controlar o poder militar, mesmo porque é incompatível em seu seio a presença de organizações não democráticas.

Quanto à diferenciação, a segunda peculiaridade do modelo educativo, ela se relaciona com os interesses pessoais, a originalidade de cada um, as qualidades individuais e valoriza as condutas de iniciativa e protagonismo. Algumas práticas são consoantes à sua realização, tais como o exercício inopinado, a sobrevivência no mar, e a criação e participação em grupos de afinidade temática. Pode ser mencionado ainda o treinamento das denominadas forças especiais que prima pela valorização máxima das características particulares. Observe-se que a rotina diária relativa ao processo formativo é composta majoritariamente por atividades conjuntas, obrigatórias e padronizadas além de ser intensa e exaustiva, o que tende a dificultar sobremaneira a manifestação de reações singulares. Esta rotina que inclui de maneira incisiva as várias formas da ordem unida encontra-se, portanto, mais a serviço do processo de uniformização. Por sua vez as forças especiais, consideradas como tropas de elite, são constituídas de pouquíssimos grupos os quais agregam um número muito reduzido de integrantes.

Em relação à pedagogia tecnicista, não é possível negar que a mesma é adequada á formação militar, particularmente no que diz respeito ao manejo do material bélico letal e de custo muito alto e a exigência de elevados níveis de perícia e competência. Embora o preparo dos militares nos dias de hoje requeira uma atenção à tarefa de manter a estabilidade do mundo, não pode ser esquecido que este preparo deve ter em mira também, possíveis conflagrações irregulares em que seja necessário o emprego de grupos de soldados armados. No entanto, vale lembrar que no que tange à elaboração de objetivos do ensino ela enseja uma especificação exagerada dos resultados a alcançar, pois leva em conta seu falso pressuposto de que as condutas mais complexas constituem a soma e não a integração das mais simples. Por sua vez, a prevalência da rotina diária tende a dificultar a instauração de ações revisionistas incidentes neste processo. Outro agravante é a vigência do planejamento educacional centralizado e não participativo. Assim sendo, os objetivos a alcançar são determinados por instâncias superiores que possuem equipes especializadas na tarefa de elaborá-los. Como pode ser notado, este tipo de planejamento é bem consoante à formação do reflexo de obediência pretendido pela ordem unida.

No que diz respeito ao estilo administrativo posto em prática, ele também se mostra centralizado pois as decisões tomadas nos escalões mais elevados tem que ser cumpridas nos escalões inferiores. Porém este processo permite o uso do mecanismo de consulta aos subordinados hierárquicos, bem como aceita que a execução seja flexível. Note-se que por causa da estreita proximidade tal modo de gerenciamento inclina-se a influenciar o exercício da liderança que é o componente decisivo em situações de combate. Com efeito, é sabido por exemplo que a nossa força terrestre incentiva os comandantes de diversos escalões a tomar iniciativas, bem como os incentivam a buscar informações e sugestões entre seus comandados antes de tomar decisões.

Em relação a tal forma de exercitar a liderança deve ser dito que a mesma, embora seja funcional, não encontra-se entre as versões mais proeminentes. Dentre estas acha-se a auftragstaktik, ou, liderança pela finalidade praticada pelos alemães, que possibilita a todos os integrantes da pirâmide hierárquica o exercício da crítica, da autonomia e da iniciativa, bem como até o descumprimento de determinada ordem ou missão com base no convencimento e na interpretação pessoal. Outros dois estilos também mais destacados da atualidade dizem respeito à innovator leadership e à shared leadership que são empregadas pelos norte americanos nas guerras não convencionais que costumam estar envolvidos. A liderança inovadora é aquela onde ocorre a divisão do poder do líder com seus comandados, o qual os estimula a assumir responsabilidades, praticar a conduta da autonomia e exercitar a capacidade criativa, tendo em vista provocar o surgimento de invenções aproveitáveis. Por sua vez a liderança compartilhada é aquela resultante das contínuas interações recíprocas entre os integrantes do grupamento no qual todos possuem o mesmo grau de responsabilidade pela sua condução no cumprimento das missões a ele atribuídas.

Como pode ser notado, a análise realizada mostra que o modelo educativo utilizado nas nossas Forças Armadas possui diversas vulnerabilidades que facultam a proposição de vários questionamentos. Por conseguinte, ele não é tão robusto como aparenta ser ou como muitos pensam que é. De fato, as colocações enunciadas não autorizam asseverar que ele é dotado de suficiente legitimidade. Entretanto, isto não significa que os militares não estejam atentos à necessidade de fazer reformas atualizadoras. Ao contrário, muitas mudanças vêm ocorrendo nos processos de formação. Já aconteceram alterações na grade curricular, a educação a distância foi adotada, metodologias ativas centradas no aluno tornaram-se realidade e a participação da família na educação básica tem sido estimulada. Por sua vez a formação continuada na forma de cursos e estágios, tanto aqui como no exterior, em instituições castrenses ou civis, coloca em relevo o aspecto diferenciador do modelo em questão.

Observe-se porém, que o ensino ofertado pelas Forças Armadas, em sua totalidade, consegue preparar militares tradicionais e militares intelectuais, mas rarissimamente chega a produzir o militar reflexivo, o qual é imprescindível nas operações bélicas atuais, bem como o intelectual militar, um personagem capaz de fazer uma reflexão radical e rigorosa sobre este modelo educativo, e em decorrência, apresentar propostas alternativas transformadoras requeridas. Somente após a realização dessa atividade reflexiva e da implementação das sugestões consequentes torna-se admissível fazer conjecturas a respeito do possível uso do modelo educativo militar no ensino público civil.


Para conferir a primeira parte do texto “A Legitimidade das escolas cívico-militares – I”. Acesse clicando aqui.

Imagem de destaque: Roberto Stuckert Filho/PR

 

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