A laicidade em questão: um exemplo que faz pensar – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

Berlim, cidade-estado e capital da Alemanha, cujo status de zona de ocupação só em 1995 foi integralmente levantado, tem enfrentado uma problemática escolar que poderia parecer simples, não fosse o que ela expressa nos termos dos conflitos da sociedade contemporânea. Desde 2005 proíbe-se na cidade, em nome da neutralidade do Estado, a ostentação de símbolos religiosos entre policiais, juízes e funcionários do Judiciário quando em exercício público da função. O mesmo vale para professores e outros profissionais com responsabilidade pedagógica nas escolas públicas.

A medida atinge, essencialmente, mulheres islâmicas cujo véu sobre a cabeça não deixa dúvidas sobre suas crenças. É imensa a comunidade islâmica na Alemanha, oriunda de vários países da África e do Oriente Médio, além da Turquia, origem do maior contingente. Muitas das famílias islâmicas que vivem hoje no país já têm gerações nascidas na Europa, mas que seguem, de maneira muito variada, com forte vinculação não apenas com a cultura de seus pais e avós (ou bisavós), mas também criando novos laços que aumentam ainda mais o gradiente de suas crenças. A presença de mulheres islâmicas trajando o véu é algo, portanto, absolutamente corriqueiro nas ruas alemãs.

Em janeiro último, o Tribunal Constitucional Federal considerou que a medida de neutralidade não poderia ser aplicada nas escolas, de forma que cada caso de professora ou outra profissional vestindo um véu deveria ser individualmente avaliado se representaria ou não uma ameaça. Isso teria que ter gerado uma modificação na lei, o que não aconteceu. Ao contrário, há cerca de dois meses o parlamento berlinense reafirmou a proibição.

No centro da questão está uma professora que, aprovada na sequência de provas necessárias para a obtenção da licença docente na Alemanha, foi impedida de candidatar-se a uma vaga para a escola pública. Em uma entrevista com autoridades pedagógicas, foi inquirida se renunciaria ao uso do véu em sala de aula. Frente à negativa da resposta, foi lembrada da lei de neutralidade em relação às visões de mundo.

A professora, considerando que não eram suas qualidades profissionais que estavam sendo avaliadas, entrou com uma ação na Justiça do Trabalho e tem recebido o apoio de entidades que se ocupam da luta contra as formas de discriminação social. Na mesma situação que ela, relata o ótimo diário berlinense Tageszeitung (taz.de), em reportagem de Alke Wierth de 26 denovembro1, há mais seis pessoas. Todas, entre duas mil e setecentas que concluíram a formação e os exames, não renunciariam ao véu e também estariam impedidas de aceder à posição de professora. Caso tenha sucesso a demanda judicial, ainda segundo o TAZ, em cujas informações me baseio para este comentário, a professora deverá receber uma indenização, visto que tem sido impedida de trabalhar. E Berlim terá que mudar sua lei.

Formar-se professor da escola na Alemanha exige um longo caminho que começa nos anos de escolarização, uma vez que para chegar à Universidade é preciso concluir o ensino médio na modalidade Gymnasium, o que exige dedicação sistemática e notas expressivas. Sem cultura formativa na família e o correspondente rigoroso domínio da língua do país, é muito mais difícil obter os padrões necessários, o que frequentemente leva muitos filhos de imigrantes para outras modalidades que, uma vez concluídas, autorizam o aprendizado de uma profissão ou mesmo o acesso a um curso técnico superior, mas não a matrícula na Universidade. Concluída a graduação, geralmente em pelo menos duas disciplinas do conhecimento em combinação (não se pode ser professor de apenas uma matéria), passa-se por um estágio supervisionado de dois anos, com avaliação por parte da escola em que ele foi realizado e de técnicos estatais, para então se submeter a novo exame. Ao final, se aprovado, o candidato alcança um coeficiente e com ele se candidata a uma vaga de professor da escola pública. Esta, por sua vez, é geralmente excelente e oferece condições de trabalho muito boas aos professores. Em contrapartida, as exigências sobre eles, inclusive por parte das famílias dos alunos, costumam ser grandes.

No mesmo Tageszeitung, mas dois dias depois, em breve texto assinado por Claudius Prößer, a questão foi mostrada com outras nuances. Depois de citar a advogada da professora, segundo a qual “a recusa generalista do véu no trabalho escolar atinge às mulheres”, Prößer escreveu: “O certo é: uma religião atinge as mulheres quando as demarca com roupas específicas e, sem pausa, impede-as de seguir com seu trabalho”2.

Toda a problemática diz algo sobre os desafios enfrentados pela escola, mas também, e na mesma direção, pela sociedade ocidental como um todo. Um dos pilares da escola pública é seu caráter laico, de maneira que ela não pode professar uma religião ou qualquer outro tipo de crença em seu projeto e em suas práticas, devendo manter-se nos limites da ciência e das artes. Se em ambos domínios permanece um momento mitológico, é outro problema, e cada um deles se diferencia, essencialmente, da fé. Mas até que ponto uma professora que mostre sua radicação religiosa de forma ostensiva ameaça a laicidade? Tendo a pensar que não é um problema que as opções religiosas possam ficar explícitas – de resto, expressões de registros culturais mais amplos –, desde que não haja proselitismo.

Numa sociedade plural e que convive com valores conflitantes, a imposição de limites estreitos e rígidos não é positiva e coloca em risco o direito à autodeterminação cultural. Compatibilizar a expressão de tal direito com a laicidade da educação pode não ser tarefa fácil, mas deve ser enfrentada até o limite, ainda que este não possa ser ultrapassado. Onde ele se localiza é uma questão a ser vista na forma de uma aposta ético-política e, para tal, é preciso que todos os lados invistam em um clima de entendimento. Um desafio e tanto.

Berlim, Kreuzberg, dezembro de 2015.

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