A ideologia de gênero e a intervenção política no currículo escolar: “eu quero uma pra viver?” – Joaquim Ramos e Sandro Santos

A ideologia de gênero e a intervenção política no currículo escolar: “eu quero uma pra viver?”

Joaquim Ramos

Sandro Santos

Em nível nacional, o país acompanha acirrados debates em torno de diversas questões polêmicas que envolvem a população brasileira. Dentre tantas outras, um dos assuntos debatidos tem sido o da ideologia de gênero no currículo escolar. O Jornal Estado de Minas de quarta-feira, dia 24 de junho, trouxe uma reportagem intitulada “Polêmica sobre questões de gênero domina debate sobre planos para a educação”, colocando em evidência o assunto dentro da construção do plano municipal de educação de Belo Horizonte.

Trata-se da reinvindicação de um grupo associado a partidos políticos ligados a setores religiosos que articula um discurso a favor da “família brasileira” e que pleiteia que meninos e meninas não aprendam sobre gênero e sobre sexualidade na escola. O grupo enfatiza que isso é de responsabilidade da família.  Já não bastasse a judicialização das relações pedagógicas e das matriculas na educação infantil, nossas crianças se encontram à mercê de interesses político-ideológicos de partidos conservadores e de políticos que de educação entendem quase nada.

Em torno da profusão de pontos de vista – muitos deles equivocados – não há clareza sobre determinados conceitos que são arremessados para o interior da discussão em meio a um turbilhão de opiniões de senso-comum e indubitavelmente, a condução do debate, da maneira como tem aparecido no cenário nacional, demonstra que a miscelânea feita sobre alguns conceitos (gênero, sexo, sexualidade e educação), de forma descontextualizada e desprovida de sustentação teórica não minimiza e nem contribui para elucidar o que deve ou não ser tratado como currículo escolar. Sem entrar nos demais assuntos, enfatizamos que gênero é um conceito que diz respeito às construções sociais realizadas em torno de homens e de mulheres, masculinidades e feminilidades. Trata de desconstruir a noção de diferença historicamente estabelecida com base nas diferenças sexuais e anatômicas entre homens e mulheres evidenciando que tais construções são de ordem sociocultural.

Essa definição, apresentada, aqui, de maneira aligeirada, nos ajuda a descortinar a real polêmica por trás da notícia do jornal. Gênero, sexo e sexualidade, em seu conjunto, são conceitos abstratos, isto é, interpretações que historicamente foram construídas, desconstruídas e reconstruídas sobre os corpos masculinos e femininos. E isso por que o corpo, como afirma Linda Nicholson (2000) é a base material de todas essas interpretações. Portanto, se se diz respeito ao conhecimento de nós mesmos, de nossas idiossincrasias e da nossa constituição, é perfeitamente salutar (e legítimo) que a escola continue debatendo tais questões.

Em “Interpretando o gênero”, essa mesma autora irá afirmar que o conceito de gênero foi originalmente desenvolvido por um grupo de feministas de tradição inglesa, e tinha como função, desde sua emergência, de se opor ao termo “sexo”, para descrever o que é socialmente construído, em contraposição ao que é biologicamente herdado. Trata-se de um conceito analítico que também tem sido habitualmente usado como referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos “femininos” de corpos “masculinos”, como os banheiros escolares que aparecem na reportagem do jornal. Vale ressaltar nesses tempos de uso e abuso da retórica que de maneira muito sintética e clara Nicholson aponta que,

[..]  ‘gênero’ é pensado como referência a personalidade e comportamento, não ao corpo; ‘gênero’ e ‘sexo’ são, portanto, compreendidos como distintos. De outro lado, ‘gênero’ tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer constituição que tenha a ver com a distinção entre masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos ‘femininos’ de corpos ‘masculinos’ (NICHOLSON, 2000, p. 09).

Ainda que se o corpo fosse concebido a partir de uma compreensão social, o sexo não poderia ser independente do gênero. Apesar do segundo sentido, por ela descrito, ser amplamente difundido entre as feministas, ainda percebe-se uma forte influência do primeiro sentido em conceber o corpo à margem, isto é, fora da cultura e da história. Dessa forma, o conceito de gênero tem suas origens estabelecidas em duas importantes matrizes do pensamento ocidental moderno: “a da base material da identidade e da construção social do caráter humano” (NICHOLSON, 2000, p. 10). Assim, nesta perspectiva, o corpo é concebido como “um cabide de pé, no qual são jogados” diferentes casacos que são entendidos como “artefatos da cultura” (2000, p. 12).

 Desse modo – de maneira breve em função do formato desse artigo – entendemos que a deturpação de alguns conceitos surge, nos tempos atuais, como o ponto nodal da discussão e a pergunta que não pode, nem deve calar é: trata-se efetivamente de uma discussão de gênero, ou sobre a vigilância acerca da construção da sexualidade de meninas e meninos? Segundo Guacira Louro (1997) a escola é uma das instituições sociais que mais labora na produção e na reprodução de estereótipos de gênero. A escola (em concordância com a sociedade na qual está inserida) segrega meninos e meninas, disciplina corpos masculinos e femininos. Ela ministra simultaneamente – por meio de um currículo implícito e silente – uma educação bélica que ensina meninos a serem fortes, expansivos e objetivos e uma outra educação mais docilizada para meninas, reservando-lhes uma domesticação de seus corpos e de suas mentalidades.

Nesse sentido, a escola tem efetivamente auxiliado a sociedade nos processos de socialização de gênero de meninos e meninas? Com isso problematizamos: retirar do plano municipal de educação (ou de qualquer outro plano de educação) os termos gênero, relações de gênero, sexualidade e identidade sexual contribuiria para a equacionar ou equilibrar as diferenças entre “machos e fêmeas”? Será que com a divisão dos banheiros escolares no âmbito da educação infantil, estaríamos de fato combatendo a ideologia e a discriminação de gênero na escola? E fora da escola, meninos e meninas têm sempre banheiros separados do resto do mundo?

Antes de vociferar de forma atabalhoada sobre tais questões, entendemos que é de responsabilidade de todos nós, brasileiros e brasileiras, e, em especial dos políticos de plantão que, hoje, desejam “tirar tudo do lugar”, debruçar nos tratados e estudos sobre os assuntos dos quais desejam legislar, para em seguida, de maneira assertiva, poderem apontar o que pode ou não, por exemplo, constar nos currículos escolares.

Para saber mais:

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 8ª ed. – Petrópolis: Vozes, 1997. 159p.

NILCHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas, vol. 8, nº 2, 2000. P. 9- 42.

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