A doce e justa ira da Professora Nilma Lino Gomes

Joaquim Ramos

Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado! (James Baldwin 1924-1987)

Para mim, não tem jeito! Toda vez que escuto a professora Nilma Lino Gomes – agora, recém-aposentada de seu ofício docente da Faculdade de Educação/UFMG – sou tocado de muitas formas e de diferentes maneiras. Vamos à explicação!

Antes de mais nada, é bom que se diga: é gostoso escutar a Nilma falar. Certamente, pela experiência talhada em longos períodos de exercício da docência, pela experiência de vida, pela militância e, certamente, por ter sentido na pele, em algum momento da vida, quiçá, em muitos, os indefensáveis tipos de racismo e discriminação. Dessa maneira, atua na docência como uma “mulher desdobrável” e possui uma didática sem atropelos que “vai ao nosso mil avô” – como preconiza Adélia Prado. Quando Nilma fala, ela ensina, emociona e impulsiona seus ouvintes a sair das zonas de conforto. Então, é “doce” escutá-la, mas é de uma doçura exigente e comprometedora, pois requer, de homens e mulheres,a disposição de se colocarem também em movimento frente às desigualdades, às discriminações, ao fascismo, ao racismo, à lgbtfobia, ao desprezo pelas diferenças e pelos diferentes, à misoginia… Enfim, seus ensinamentos não são apenas para deleite e nem para pessoas “moles demais”. Quando fala, incomoda. Exige reflexão e ação. Suscita o desejo de, assim como ela própria, ajudar rearranjar as relações humanas, quase sempre, tão desiguais.

Explicando um pouco mais. No dia 29 de agosto de 2019, na Faculdade de Educação da UFMG, durante o XIII Seminário Anual do Pensar a Educação Pensar o Brasil, , estive em palestra proferida pela professora Nilma Lino Gomes intitulada de Movimento negro, resistência democrática e educação. De saída, após a honrosa e merecida apresentação do professor Luciano Mendes de Faria Filho, a professora foi recebida com um longo aplauso, oferecido de pé pelos presentes. De minha parte, eu já sabia que essa recepção, prenunciava, de alguma maneira, a gratidão do público em poder dividir com ela, naquele espaço e tempo, as reflexões que se seguiriam. Mas, como nada é de graça, reitero: uma palestra de Nilma Lino não é um acontecimento apenas para deleite e entretenimento. Nilma incomoda!

Lá de trás, na última fileira do auditório Neidson Rodrigues, eu me conectava à fala da exímia oradora. Ao meu lado, alguém se remexia na cadeira. Parecia afoita para fazer algum tipo de intervenção. Indaguei a mim mesmo: será que é para contestar, refutar, referendar, agradecer, desdizer… sei lá…alguma coisa parecia incomodar. Ali, ao meu lado, estava uma senhora, bem acima da média de idade dos estudantes presentes naquele espaço, de cabelos brancos, com aparente desejo de interferir no conteúdo daquele assunto tão pertinente e necessário para ser discutido em uma faculdade de educação. De minha parte, eu sempre soube que o conteúdo da fala de Nilma não é apenas para agradar; sua fala incomoda muita gente. Assim, apenas aguardei o desenrolar dos acontecimentos. Ao mesmo tempo em que eu estava atento à palestra, atentava também aos reiterados movimentos dessa pessoa assentada ao meu lado. Escutei dessa senhora alguns resmungos… alguns “muxoxos” ininteligíveis, umas poucas alusões, muito baixinho, sobre a fala de Nilma. De modo especial, ela se contorcia mais, quando vinha à baila na fala de nossa oradora, algum enaltecimento à política do governo petista. Assim como eu, essa senhora também estava atenta ao pronunciamento da palestrante.

Nilma pratica o bom combate e, sem se perder em devaneios, foi direto ao ponto. Deste modo, como boa pesquisadora, trouxe alguns autores para auxiliá-la na reflexão. De início, indagou: onde está a resistência? Que contribuição o Estado e a sociedade oferecem para combater o racismo? Para dialogar com essas e outras tantas questões, convocou para a cena o pensamento do professor Luiz Alberto de Oliveira Gonçalves e da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Esses dois irão afirmar que no Brasil, todas as vezes que se inicia a discussão sobre raça e sobre a população negra, o ponto de partida é o lugar comum da denúncia e que em relação à educação, o que vivemos na atualidade nos aproxima – e muito – do passado cruel, vivenciados por negras e negros. A ênfase da palestra, no entanto, não se restringiu à denúncia das atrocidades cometidas contra adultos e crianças negras e negros. Muito mais que denunciar, de acordo com a palestrante, o movimento negro cumpriu o papel também da resistência e da luta, da educação e reeducação da sociedade.

Para Nilma, desde tempos imemoriais essa mesma sociedade tenta submeter a população negra – sejam pessoas cativas ou libertas – a um rígido controle e a uma imensurável vontade de controlar os corpos, as mentes, as religiões de matriz afro, uma imensurável vontade de cercear e restringir o mundo da população negra… No caso do Brasil, desde os jesuítas há uma premente necessidade de civilizar essa mesma população. Homens, mulheres e crianças de pele negra eram, e até hoje são, tratados como objetos, coisas, peças, animais. Dito assim, dessa maneira, Nilma indaga novamente: o que mudou de lá para cá? Mudou alguma coisa?

E vai desvelando incontáveis, incomodáveis e incontestáveis verdades. Não fala por ela – ainda que tenha autoridade para fazê-lo – prefere trazer pesquisas e autores da área. Assim, além de importantes textos dos professores Luiz Alberto e Petronilha, Nilma apresentou estudos de outros pesquisadores como Marcus Vinicius Fonseca (UFOP), Florestan Fernandes, Surya Aaronovich Pombo de Barros, Maria Lúcia Müller, Lucimar Rosa Dias e lembrou também da Frente Negra Brasileira, Imprensa Negra Paulista, Teatro Experimental do Negro, Jornal Quilombo… como importantes instrumentos de registros e de denúncia aos ataques sofridos pela população negra.

Ao fazer um breve passeio investigativo, transita pelo Brasil Colonial, dá uma espiadela no Brasil Imperial e ao chegar ao Brasil Republicano, interroga de novo: “será que na república – mesmo no período mais recente de democratização da educação básica – a relação entre a criança negra, a educação, a pobreza e o trabalho infantil foi superada? Se não, por que tão longa duração? Tenta pinçar respostas em nossas Constituições, para concluir que, mesmo com a intervenção de parlamentares comprometidos com a causa, nenhuma das constituições brasileiras se comprometeu, radicalmente, em mudar esse “estado de coisas”.

Ao destacar o processo de elaboração da Constituição Cidadã, de 1988, Nilma afirma que, ao contrário daqueles parlamentares comprometidos com a causa, ficou evidente o desejo de muitos outros parlamentares de emperrarem a engrenagem construída pelo movimento negro. Esses “sujeitos” – podemos até imaginar de que pedigree se originam – avaliavam que, naquele momento, qualquer menção à dimensão racial e combate ao racismo colocariam em evidência o chamado racismo às avessas. Em suas palavras: “alguns parlamentares achavam que colocar a inclusão do combate ao racismo,explicitamente no texto constitucional, era fazer a discriminação e o racismo” por isso brigaram e se opuseram. Entretanto,o movimento negro em seu incessante processo de resistência, conseguiu construir uma subcomissão para discutir e fazer avançar, ainda que minimamente, a questão e assim, com a ajuda de alguns poucos parlamentares negros e de entidades do movimento negro, foi possível obter pequenas conquistas na intitulada Constituição Cidadã. O que não foi diferente no processo de elaboração da LDB, de 1996. A questão racial não aparece como uma preocupação do Estado. De acordo com a professora Nilma, uma mudança mais substantiva somente ocorreu quando o campo progressista assumiu o poder, com a chegada de Lula à Presidência da República.

Neste momento da palestra, aquela senhora que estava ao meu lado resmungou “pesadamente” para, em seguida, de modo miúdo, fazer alusão ao PT, mas não foi possível compreender o teor do resmungo. Enquanto isso, em sua fala, a professora Nilma apresentava dados concretos da política implementada pelo “campo progressista”, elencando os muitos avanços ocorridos no período em que o PT governou o país. E não parou por aí. Destacou a luta e a resistência de negros e de não negros, por um mundo mais justo e menos desigual, evidenciando que a luta antirracista é um bem para a educação e para a sociedade.

Ao retratar o momento presente, vale destacar, aqui, de modo recuado – como exige as boas citações – um pequeno fragmento da palestra da professora Nilma Lino Gomes (2019):

A questão racial é um eixo estruturante das desigualdades em nossa sociedade, com especial destaque para a educação. Como vocês puderam ver, todas as mudanças ocorreram num contexto de luta e de resistência, sempre com um ator coletivo tensionando de dentro para fora o Estado, tensionando de fora para dentro a universidade, tensionando de fora para dentro a educação básica e fazendo a resistência, criando fato política e as mudanças foram acontecendo e todos nós usufruímos destas mudanças. O que foi feito até agora, foi sempre por meio de pressão, de resistência e de insistência do movimento negro organizado e por meio das lutas dos negros e das negras, em movimento.

Nilma destacou que o momento presente é o de resistência democrática e é de responsabilidade de todos, pois a luta racial não é de guetos, mas inclusiva e democrática e ajuda a combater tantas outras desigualdades e a consolidar relações mais respeitosas e equânimes para todos. Em tempos de democracia em risco, o Estado está se transformando em Estado autoritário que prima pela privatização, extermínio e morte. Por isso, o momento atual é de construirmos outras estratégias de resistência democrática.

Por fim, ressaltou que, em tempo de democracia em risco, há possibilidade de haver perdas das conquistas obtidas às duras penas. Por isso, o tempo é de vigilância e reinvenção da resistência democrática. Aqui, neste ponto da argumentação, a professora faz a convocação:

É tempo de unir e articular todos e todas que entendem que a importância do combate ao racismo como projeto de nação, como um projeto de estado democrático de direito e assuma o seu lugar ético e político na sociedade e na educação de ser antirracista. O movimento negro nos reeduca para ser antirracista. O que é muito mais do que ser contra o racismo. Ser antirracista resulta em prática. Ser contra o racismo, muitas vezes é uma fala discursiva e um movimento retórico. É tempo de indignação. É tempo de justa ira.

Para Nilma, a justa ira conduz à ação, à reflexão, à resistência e ao trabalho coletivo. Sendo assim, ela enfatiza, “é disso que nós precisamos e a educação constitui um espaço primordial para esta compreensão e para esta formação. Por isso, não podemos desistir”. Finaliza a sua palestra, com as palavras proferidas por sua mãe, no momento em que Dilma Rousseff foi arrancada do poder: “levanta daí, minha filha, vai trabalhar!”.

No debate, agora, momento apropriado para a discussão e perguntas, a mesma senhora que continuava assentada ao meu lado, enfim, teve a oportunidade de se expressar. Quis saber mais sobre o racismo às avessas. Nilma, generosa e minuciosamente, explicou. Não satisfeita, essa senhora tencionou a dar uma explicação sobre como ela, na condição de mulher branca, havia sofrido esse tipo de racismo reverso em um posto médico, por uma dentista que, de acordo com ela, nem havia ingressado na universidade por meio de cotas. E emendou: “se eu fosse uma pessoa da mesma cor da dentista, ela teria feito o encaminhamento para a especialidade que eu precisava, mas como sou branca…”. De modo didático, Nilma retomou a palavra para explicar, por meio da ênfase relacionada a aspectos ligados a um conjunto de fatores que procura conduzir toda uma multidão, de negros e negras – no coletivo – a se tornar o alvo preferido de uma elite racista, classista, que sempre buscou e busca ainda, a todo custo, subjugar e dar tratamento diferenciado a esse grupo étnico. Sinceramente? Acho que essa senhora entendeu muito pouco. Mas acredito também que ela não saiu incólume. Esse pouco serviu para tirá-la do lugar, para incomodá-la, para fazê-la explicitar qual o seu lugar de fala. Se não entendeu nada, paciência!

Enfim,em tempos de distopia, ficamos ensinamentos da palestrante e de sua mãe:vamos levantar “daí”, colocar a mão na massa e, juntos, negros e não negros,construir a resistência e a luta democrática para a superação do racismo.


Imagem de destaque: Thiago Rosado

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