A distopia é agora: Fahrenheit 451

Maria G. Lara

“Ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está escrevendo sobre o futuro quando, na verdade, você está atacando o passado recente e o presente.” Essa foi uma das afirmações feitas por Ray Douglas Bradbury numa entrevista para a Playboy, em 1996, quando perguntado sobre seu trabalho. Autor, majoritariamente, de ficção científica, Bradbury se popularizou e é até hoje reconhecido por seu maior sucesso, Fahrenheit 451, publicado originalmente em 1953.

Fahrenheit 451 se tornou um clássico da ficção científica, colocando Ray Bradbury ao lado de nomes como Isaac Asimov e Phillip K. Dick. Apesar de ser parte desse clubinho de grandes autores, algo diferencia o trabalho de Bradbury dos demais: a sociedade de F451 não está distante da nossa, nem social nem tecnologicamente. Nada de carros voadores, robôs sencientes, viagens espaciais. Nada de mundos destruídos, escassez absoluta de recursos ou líderes obviamente tirânicos e sádicos. A distopia de Fahrenheit 451 é, na verdade, uma espécie de paraíso da classe média. Bem, “paraíso” costuma ser uma palavra associada a utopias, o completo oposto no espectro de representações do mundo em relação às distopias. Como pode então esse mundo tranquilo de Bradbury ser uma distopia?

No futuro imaginado no romance – que parece estar bem próximo de nossos tempos, já que os anos 1990 são usados como uma referência temporal não muito distante em um dos diálogos – o pensamento crítico é proibido. Cursos de humanidades se encerraram em todas as universidades, o ócio como tempo pra pensar é desencorajado, ex-professores vagam pelas estradas sem poder se fixar e a posse de livros é proibida, tudo isso solidificado em décadas de revisionismo histórico. Um bocado de coisa que alguns anos atrás talvez nos soasse muito distante, algo que só poderia acontecer sob governos insanamente autoritários, agora parece desconfortavelmente próximo de nós, não é mesmo?

Os piores elementos do mundo onde nosso protagonista Guy Montag vive são muito semelhantes a tendências fáceis de observar hoje. O antiintelectualismo de Jair Bolsonaro, Donald Trump, terraplanistas e companhia divide os holofotes do romance com o bombeiro Guy Montag. Bradbury disse aquilo sobre ficção científica ser sobre o passado e o presente, mas agora ele parece também ter previsto o futuro.

O único limite entre o Brasil de Bolsonaro e os Estados Unidos distópicos de Fahrenheit 451, surpreendentemente, é que as instituições parecem ser eficientes no romance de Bradbury. Apesar da figura da guerra sempre presente como forma de manutenção do poderio estadunidense, na parcela de mundo que vemos aos olhos de Montag não parece haver grandes disparidades sociais, a escola – ainda que reduzida a um espaço de decorar fórmulas e fazer exercícios – parece ser uma de acesso universal, a classe predominante parece ser a classe média. Seria esse o futuro do Brasil atual, com cada vez mais nomes autoritários e antiintelectuais em nossas posições de poder?

O mundo de F451 é ruim, muito ruim. O único conhecimento admitido é o técnico, o decorado, sem possibilidade de divergir para nenhum dos lados. A única possibilidade política é a situação, que mantém eleições acontecendo periodicamente utilizando candidatos intencionalmente repulsivos na “oposição” para garantir sua vitória. Mas a manutenção desse mundo parece ser pautada mais na indiferença como forma de amortecer os ímpetos do pensamento diverso do que no ódio. Do que pude entender das entrevistas de Bradbury, a supressão ao pensamento crítico no romance não foi recebida com indignação pela população, tendo ela mesma, por todos os lados, colaborado para que ela se instalasse. Na nossa realidade, a violência parece ser uma arma muito mais adequada à figura de nosso líder de estado.

Ao passo em que Bradbury se valia da ficção científica para comentar o passado e o presente, nosso Brasil de 2019 parece cada dia mais se inclinar para esses tempos a que o autor se referia. Quando até mesmo aqueles que já foram aliados do regime eleito ano passado passam a ser ameaçados, como vem acontecendo com a jornalista Rachel Sheherazade, o que podemos esperar para o futuro do pensamento e da expressão em nosso país? O “paraíso da classe média” de Bradbury não parece algo que agradaria à nossa própria classe média, cada dia mais deslocada da própria realidade? Quão longe estamos da destruição bradburiana pelo mesmo fogo que pôs abaixo o Museu Nacional, destruição pontuada pelo pouco caso do nosso hoje presidente?

Revisitar essas distopias numa leitura menos fantasiosa é um bom exercício para pensar sobre os mundos que tentamos evitar – e sobre aqueles para os quais nos encaminhamos, a contragosto ou não.

Imagem de destaque:  Quinten de Graaf /Unsplash

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