A ciência como retórica e a vocação da ciência

Rômulo Paes*

A pandemia do novo coronavírus retirou a ciência da página de curiosidades dos jornais e a remeteu para a manchete principal. Todos os dias, estudos sobre medicamentos, fatores de risco, padrões epidemiológicos, respostas imunológicas, impactos, e sobretudo vacinas, disputam a condição de notícia principal contra os fatos da política, da economia e crimes.

Na narrativa dos políticos, tornou-se a palavra mais citada. Até entre os negacionistas a ciência aparece como instituto de endosso a teses esdrúxulas. As fake news estão sempre adornadas com estudos, obviamente fakes, de uma universidade ou cientista famosos. Há inclusive os que invocam para si a autoridade de prescrever medicamentos controversos pelo fato de possuírem um diploma em medicina, ou seja, uma habilitação científica básica, mas com potência para produzir ações anticientíficas. No Brasil, algumas toneladas de cloroquina e, mais recentemente, de ivermectina têm sido prescritas em nome da ciência. São tempos de ciência e obscuridade.

Vêm da ciência o conhecimento acumulado sobre a efetividade das medidas quarentenárias no combate de doenças infeciosas. Também da ciência vêm o conhecimento sobre os efeitos econômicos, sociais e psíquicos que a redução de mobilidade das pessoas pode provocar. E é justamente a dificuldade em se realizar o manejo adequado do primeiro grupo de ações que nos condena a um ano de contração econômica, maior divergência social e uma espécie de generalizada ciclotimia. Diante disso, uma onda de euforia está colocada por conta do desenvolvimento de vacinas. Mais de 30 vacinas em desenvolvimento em todo o mundo e quatro já em teste ou autorizadas para teste no Brasil fazem políticos e pessoas comuns apostarem seu futuro imediato na eficácia de algumas delas. Países ricos vão às compras buscando garantir o maior número de doses junto às empresas desenvolvedoras. Países que possuem capacidade de desenvolvimento vão promovendo uma corrida frenética pela produção e distribuição da vacina. Países com menos recursos buscam acertar no alvo, apostando seus recursos mais limitados em vacinas que pareçam mais promissoras. É um jogo de bilhões de dólares. Há muito a perder em vidas, em dinheiro investido, em impactos econômicos e sociais não evitados. Sim, a ciência é uma atividade com muita adrenalina.

Com tudo isso, entramos em agosto, quando os executivos nacionais apresentam suas propostas orçamentárias para o ano seguinte em suas respectivas casas legislativas. Para surpresa de muitos, governos federais e estaduais têm apresentado propostas com redução de investimento na saúde, na educação e ciência. Por vezes, em todos estes componentes (governo federal), por vezes com redução na atividade científica (governos estaduais). A pergunta que fica é: qual a lógica que impede o maior investimento na formação de base, na formação especializada, no desenvolvimento de experimentos, na aplicação dos resultados, no período em que precisamos desesperadamente da ciência, de uma qualificada capacidade científica?

Obviamente, períodos históricos de grande tensionamento não implicam convergência nas ações, também não suprimem os interesses de grupos ou classes sociais. A adoção de uma retórica que invoque a ciência como justificativa para as ações públicas não nos leva necessariamente à vocação científica. Um otimismo perverso de que tudo isso logo passará e a pregação por um estado medíocre (também conhecido como eficiente) nos leva ao desperdício de uma grande oportunidade que este conjunto de crises nos apresenta. É óbvio que podemos sair desta pandemia melhor do que entramos, mas isto dependerá das escolhas que estamos fazendo, a começar pelos recursos alocados na construção das bases para o desenvolvimento científico, que como se dizem em todos os noticiários e palanques está produzindo a resposta efetiva para o combate à COVID-19.

* Pesquisador da Fiocruz Minas

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: GOVESP

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