Pedras, carcaça de caranguejos, pele de cobras, escamas de peixes, ossos de animais, seixos côncavos, pedregulhos, cascas de ovos descartadas dos ninhos… uma festa para os coletores. O mais inusitado foi a apresentação de uma arara dócil que convivia com a criançada. Foi levada pelo mirim mais novo da comunidade. As penas azuis cobriam-lhe o ombro. A língua grossa e preta abria o bico reluzente. Catava a pele do menino. Estridente, o som antecipou a chegada. O mirim apresentou-se para fazer um lençol colorido para os viandeiros. A arara não sentiria frio. As penas… bem, ele próprio a aqueceria. Tamanha foi a algazarra que ambos fugiram antes que alguém explicasse o improvável.
Por semanas reuniram materiais de toda ordem. Mais de um mês se passou até uma ideia vingar. Os catadores haviam avançado para espaços de terra mais firme. Experientes, encontraram maparajubas nativas. Embrenhados na mata, dia e noite, colheram amostras de látex dos caules maduros. As balatas não faziam parte do artesanato local. Nem da extração regrada. Mas todos tinham conhecimento delas. O látex, próprio para a modelagem, poderia ter serventia. Mais pesquisa e experimentação. Aquecido em banho-maria, o látex adquiria consistência firme e duradoura. A modelagem dava conta de seu formato e densidade. Serviria às máscaras? Como definir a densidade certa? O mocambo concentrou-se. Coletores retornaram à mata. Os demais, experimentariam o cozimento do látex e a modelagem. Trabalho árduo. Muitos testes. Faz e refaz. A modelagem exigiu criatividade e paciência. Encontrar a densidade mais próxima do aceitável foi outro perrengue. Muitas e muitas luas depois, um modelo foi aceito e comemorado. Amarras com finos fios do mesmo látex foi capricho dos anciãos. Do ponto do banho-maria à modelagem, sem descanso. Outro laboratório interessante. A produção final rendeu vários lençóis para os viandeiros, quase mascates, um pouco comerciantes, ainda mocambeiros. A professora agora respirava e sorria com leveza. Contente. Os formatos de proteção eram vistos em secagem, inaugurando mais um trabalho conjunto da comunidade. Muitas máscaras. Finas como a brisa que resiste silenciosamente. E a festa? Não faltariam odus para comemorar o feito. Grandes panelas aqueceram as histórias em poesia. Otin para regar a boca e o espírito. Sobravam máscaras de balateira. Árvore alta, caule com nesgas profundas, belas flores e frutos. Mais fino do que o couro, o resultado gerou confianças. Paciência e destreza produziram o que parecia um plástico resistente. Uma goma esticada ao máximo. Merecida festa. Mais de dois meses de trabalho. Os mocambeiros não falavam de outra coisa. Agora, pelo mérito da coletividade, pelo alcance dos significados, não se esqueceriam de manter as máscaras no rosto. Laváveis. Com cuidado e atenção. Reutilizáveis. Lembrando que sabão e água também deveriam estar à mão.
A festa correu a noite. A praça que não era praça, testemunhou quando viram o rosilho. De longe. Olhos cravados na escuridão. Balançava a longa e hirsuta cauda em estado de contentamento. Seria? A otin comia medos. Abria olhos. Coração. Até demais. Pois teve quem duvidasse da visagi. Mas não negasse a audição. Muitos sentiram a mão da floresta sobre o peito de carne e sentimento. Era gratidão, psora. Os bilreiros adeviam está contentos. Árvre têm sentimento. Tem ideia. Coração. E se não fosse um medinho do rosilho… assim, titiquinho, piquititinho, que até agora não ganhara explicação…. eles gostarum da iscola. Aula com tuuuuuudo isso de psô. O tudo reunia o mundo, a mãe-natureza e seu rico quintal. Por professores, todos e todas. Estudantes da vida. Das vidas que se entrelaçam nas Amazônias de seusdeuseus. De suas ciências. Heranças. Crenças. Lendas. Devas e trevas. Povos autóctones. Chegados. Atrelados. As selvas vinham de fora, engolindo a floresta e suas riquezas. Selvas de exploração e miséria. Deixavam o rastro das máquinas esfomeadas. Terra esburacada. Nua. Rapinada. Mas naquela noite, o mocambo saudava a ciência, a riqueza natural, e se propunham a trocar sabedorias. Desejavam outras aulas de aprendizagi. A professora se fez sorrisos. Embriagada de alegrias, agradece com um meneio a presença de Efon. Seus lábios e sua alma repetiram: modupe.
Glossário
Efon: búfalo na Língua Iorubá – Nação Nagô
Orò: espírito da floresta em Iorubá
Arawak, Tupi, Jê, Tukano, Karibe, Pano: troncos linguísticos amazônicos
Nheengatu: Língua Mãe, Língua Franca, comum a grande parte dos povos autóctones da Amazônia
Balata: Plástico natural proveniente da secagem da seiva da árvore maparajuba
/sykyîé / – ter medo, estar com medo (RODRIGUES, Aryon/UFSC/-Tupi antigo)
/yurupari /- espírito (RODRIGUES, Aryon/UFSC – Tupi antigo)
/awọn ẹmi/: espíritos, em Iorubá
Brocado – esfomeado/falar amazonense
Capar o gato– ir embora/falar amazonense
De bubuia– ficar tranquilo/falar amazonense
Leseira baré – lerdeza, ou quando se faz uma besteira/ falar amazonense
Cobra Norato: poema de Raul Bop (lenda amazônica da Boiuna, cobra gigantesca)
Curupira, Mapinguari: personagens de lendas brasileiras e amazônicas – protetoras das florestas
/otin/: cachaça em Iorubá
Despombalecido: enfraquecido, combalido/falar amazonense
Mirim: pequeno/ falar amazonense
Pô-pô-pô: barcos que fazem a travessia pelo Rio Negro/falar amazonense
Meninos: bebês, no geral
Uarini: farinha amarela, grossa, de mandioca fermentada, em bolinhas que lembram ovas de peixe da região amazônica
/osun/: em Iorubá, Mãe das águas doces, vive nas cachoeiras.
Iara, Mãe-d’água: segundo as lendas, uma sereia que povoa os rios da Amazônia
Macaba: mentira/falar amazonense
/odus/: histórias em forma de poesia, Iorubá.
/modupe/: obrigado, em Iorubá
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